Crítica (2): Fale Comigo
Ficha técnica – Fale Comigo:
Direção: Danny Philippou, Michael Philippou
Roteiro: Danny Philippou, Bill Hinzman, Daley Pearson
Elenco: Ari McCarthy, Hamish Phillips, Kit Erhart-Bruce, Sarah Brokensha, Jayden Davison, Sunny Johnson.
Sinopse: Um grupo de amigos descobre uma mão embalsamada que lhes permite conjurar espíritos. Viciado na emoção, um deles vai longe demais e abre a porta para o mundo espiritual.
(Leia a crítica de Carissa Vieira)
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Um grupo de jovens se reúne em torno de um objeto. Sacam seus celulares, as luzes de flash se acendendo uma ao lado da outra. Entre um gole e outro de álcool, se divertem, revezando enquanto interagem com o artefato e aproveitam as sensações viciantes que ele traz. Poderíamos estar falando de qualquer festa entre amigos, mas o que acontece aqui é um ritual para se comunicar com espíritos, e o artefato em questão é uma amaldiçoada mão embalsamada que faz com que as pessoas que interagem com ela se comuniquem com fantasmas diante de certas condições.
Quando pensamos em rituais para se comunicar com espíritos, principalmente no cinema de terror, imaginamos um ambiente sombrio, comportamentos apreensivos e sérios por parte daqueles que o praticam. Para a juventude contemporânea retratada no terror Fale Comigo, de repente o macabro se torna divertido; o perigo, atraente; o contato com o pós-vida, viciante. No lugar das velas, temos o flash da câmera do celular, imagem instigante que o filme constrói. O terror se torna, aqui, ponto de partida para um sentimento de pertencimento que se aflora especialmente na adolescência: o desejo de socializar.
Longe de fazer uma crítica aos vícios e comportamentos da geração Z, Fale Comigo está mais comprometido com a realização de um retrato crível dessa geração, e o fato de ele obter sucesso nesse registro torna o mundo deste filme muito mais verossímil. Parte desse mérito se deve ao fato de que a dupla de diretores, os gêmeos Danny Philippou e Michael Philippou – crias da geração millenial – vem de um canal de sucesso na plataforma do Youtube. Mais do que a verossimilhança, Fale Comigo se torna um dos poucos filmes de terror atuais que conseguem, de forma sutil, resolver tanto visualmente quanto contextualmente as relações e dinâmicas dos rituais jovens (o uso do celular e redes sociais, as interações sociais) com rituais mais analógicos que viriam da evocação dos espíritos e do terror manifestado. Nenhum personagem comenta, no roteiro dos Philippou a partir de um conceito de Daley Pearson, sobre o absurdo de estarem gravando os rituais para postarem nas redes sociais. Em determinado momento, após ser possuído, um dos personagens pede para que o vídeo de sua possessão seja apagado pois está constrangido; a possessão em si não é motivo para espanto, e sim o constrangimento social. Que o filme faça esse comentário sem verbaliza-lo através dos diálogos ou exposições exageradas já o distingue de uma massa do terror “jovem” que não sabe articular seus temas e subtextos, e torna prontamente a dupla de diretores australianos um olhar promissor.
Essa inconsequência da juventude, movida – entre outras coisas – pela busca por conexão é também um dos traços de personalidade da protagonista, Mia (Sophie Wilde). No processo de um luto pela morte recente de sua mãe e emocionalmente distante de seu pai, a garota de 17 anos encontra um meio de fuga no ritual que envolve a mão amaldiçoada. Quem segura a mão embalsamada e diz a frase “fale comigo” consegue se comunicar com um espírito. Ao dizer “pode entrar”, a pessoa é possuída pela entidade. O ritual só pode durar 90 segundos, do contrário a pessoa pode ser possuída por tempo indeterminado. A busca pelo entrosamento social é o que motiva o garoto Riley (Joe Bird), irmão mais novo da melhor amiga de Mia, Jade (Alexandra Jensen), a participar do ritual como corpo recebedor do espírito, com consequências graves.
Um dos melhores elementos do Fale Comigo é justamente a conciliação que o filme faz entre a empatia que ele tem com seus personagens, com a impiedosa consequência que eles sofrem por seus atos inconsequentes. O filme dos Philippou devota tempo para a construção das figuras vistas aqui como pessoas, portanto suas atitudes equivocadas (principalmente a protagonista, errônea e impulsiva) não soam como muletas narrativas. Isso não significa que a punição severa não existirá, e é justamente pelo apego do longa com o drama de Mia que sentimos o impacto trágico dessa punição, algo que vem das melhores obras de terror. A construção da garota como personagem, assim como as interações dos jovens retratados aqui, é verossímil e atenciosa, algo que se engrandece pela ótima direção de atores e pela atuação de Sophie Wilde, excelente também pela virada de personalidade nos momentos em que está possuída.
As cenas de possessão, inclusive, são eficazes para além da atuação por conta do desenho de som que potencializa as vozes distorcidas daqueles que são possuídos, e do trabalho maquiagem, que investe na alteração do rosto dos possuídos sem próteses exageradas. Nessas cenas, os Philippou e seu diretor de fotografia, Aaron McLisky, optam por lentes que desfocam tudo que ocorre em segundo plano, isolando o entorno das pessoas possuídas e direcionando a tensão (e atenção) apenas para o que ocorre na possessão. São escolhas seguras que se estendem para o resto da projeção.
Essa segurança é o que mais surpreende em Fale Comigo. Segurança na condução ideias, da direção, da construção de seus personagens e de um universo que retrata com muita propriedade a juventude contemporânea, seus ritos, suas dinâmicas, sua impulsividade e seu desejo por conexão. Não deixa de ser, também, um universo punitivo, e o fato de Fale Comigo integrar seus temas na trama não através de diálogos expositivos, mas de atitudes e situações bem articuladas, faz deste terror adolescente uma grata surpresa no circuito de terror de 2023.