Eu Cinéfilo #60: Succession: o tabu, a alienação e a destruição
Artigo

Eu Cinéfilo #60: Succession: o tabu, a alienação e a destruição

Atenção: o texto a seguir contém spoilers da última temporada de Succession.

Uma das séries mais bem avaliadas e divertidamente assistidas nos últimos tempos e que se consagrou pelos excelentes aspectos técnicos terminou. Ao longo de quatro temporadas, a coerência de um roteiro afiado, a direção que aposta em uma câmera frenética e voyeurística, e a atuação magistral dos seus atores, nos convocaram a acompanhar todo domingo uma história familiar cheia de traumas, violência dos mais variados tipos e muita destruição.

Não existe nada de muito novo em Succession. Resumidamente, é uma história familiar cheia de intrigas, porém a estrutura e a forma como essa rede de relações destrutivas avança é o que faz sua particularidade. A trama se desenrola em torno da sucessão do velho Logan Roy (Brian Cox), o pai, fundador do império. Seus filhos, Kendall (Jeremy Strong), Shiv (Sarah Snook), Roman (Kieran Culkin) e Connor (Alan Ruck) disputarão, inclusive com o pai, quem ocupará o cargo de CEO da Waystar Royco, um conglomerado de mídia.

Na primeira temporada achamos que Logan, o pai, não sobreviverá, pois o que seria uma cena bastante humilhante e de muita fragilidade, se torna uma pista falsa para os filhos e para nós que assistimos. Vaso ruim não quebra fácil, e um pai tão castrador não deixaria alguém ocupar seu lugar tão facilmente.

Logan contém o falo dessa relação. Tudo gira em torno dele, inclusive a vida dos filhos, que não conseguem viver por conta própria. Parece haver vida apenas em torno desse falo, que tudo pode, tudo tem, tudo conquista e controla. Os filhos estão condenados a ser nada, apenas filhos do pai. Por não conseguirem nada além do desprezo e talvez um pouco de amor perverso, orbitam em torno do velho Logan, como se fossem arrastados frequentemente pela gravidade, condenados a não desejar.

O poder de Logan é tão imenso, que mesmo após sua morte – algo que ele não consegue evitar, muito menos controlar – os filhos ainda continuarão vivendo sob sua sombra. A morte do pai, que ocorre no terceiro episódio da quarta temporada, que até parece ser um contrassenso, é tão chocante e tão humana, que mesmo que esperássemos isso desde o início, quando acontece, promove um choque aterrorizante. 

Freud em Totem e Tabu (1913), ao falar do tabu do incesto, coloca em questão a horda primeva, em que os filhos matam o pai, mas não conseguem conviver com a culpa, estando condenados a viver com o custo de ter rompido com esse pai para desejar aquilo que não podem. Por isso é necessário que se mate o pai simbolicamente, para que seja possível construir algo a partir de si, mesmo barrado por essa figura do pai. É possível ser mesmo barrado, mas um ser faltante.

Porém, isso é tarefa difícil. Logan morre antes que os filhos conseguissem matá-lo figurativamente. Isso deixa a tarefa de matá-lo após a morte ainda mais dura, sofrível e dolorosa. Não à toa, a todo tempo, eles tentam emular o pai, falar como ele e agir como tal, só que eles não são, nem nunca serão esse pai, e quando, especialmente Kendall tenta ser, ele recua, e gera asco em seus irmãos, representado na cena final da votação no conselho.

Até porque Logan tornou essa tarefa impossível. Ambos os filhos são alienados a esse pai, que não descoloniza, não desocupa, e que a todo momento atravessa os desejos dos filhos, imprimindo sofrimento ininterrupto às suas crias. O que deixa tudo mais instigante é que a série flerta com a ideia de que seria possível algum desses filhos romper com o pai e tentar desbancá-lo. Entretanto, um pai falocêntrico jamais deixaria que isso acontecesse, e isso fica nítido nas jogadas que Logan faz, até quando perde, ele ganha. Figuras paternas como o velho Logan, são piores que pais ausentes.

Os personagens acessórios, como Tom (Matthew Macfadyen) e Greg (Nicholas Braun), com todo sofrimento e humilhação, parecem ser os únicos a se amarem no ódio que sentem um pelo outro. Sobreviveram com seus métodos totalmente contestáveis, mas conseguiram sair relativamente bem, para os parâmetros de Succession. Tom ganhou a sucessão, quem diria.

Shiv fica condenada a viver à revelia dos seus desejos, tentando a todo custo viver nas brechas, com as sobras e num espaço que jamais será feito por ela, mas em que ela será colocada. Shiv talvez seja a que mais teve oportunidades de se desvincular dessa família abusiva, mas a todo tempo, se via sugada para o limbo autodestrutivo que são os Roy. 

Não sobraria nada além da destruição e a realização do pior pesadelo para os filhos. Connor, apesar de sua fantasia de poder, faz apostas meio ridículas, mas no fim, é o que tem mais consciência do lugar que ocupa na família, o único talvez que tenha conseguido se desvincular minimamente bem de toda a patifaria, pois escolheu viver num mundo próprio de fantasia. 

Roman, o mais perverso de todos os irmãos, parece aliviado com o fim da Waystar Royco, pois agora pode voltar a ser o que era, ou a ser o que não era, um pequeno perverso vivendo sua vida de nada, distante e sem obrigações, pois se importar e se entregar a algo que precise disputar nunca foi de seu feitio.

Kendall, o futuro preferido agora preterido, se vê obrigado a lidar com seu maior pesadelo que se tornou realidade. Não consegue a aprovação do pai, não tem a aprovação dos irmãos, e se vê solitário, abandonado e desamparado. Mesmo que seu fim indicasse um suicídio, o que não ocorreu, parece ter se tornado um sujeito fadado a perder, mesmo que tente a todo custo, romper fronteiras que sempre achou impossível, e num golpe de morte, ao rompê-la, acaba colhendo solidão.

Succession mostra também o quão falho é o capitalismo, a concentração de renda na mão de poucos, o poder nas mãos de pouquíssimos. As perversidades se proliferam e se amplificam com um sistema feito para falhar e beneficiar aqueles que conseguem garantir seu lugar no poder, custe o que custar. Parece se fazer necessário renunciar à humanidade em ser humano para garantir a dominância e poder, mesmo que isso custe outras vidas humanas, em benefício dos próprios interesses, e, diga-se de passagem, interesses perversos e muitas vezes fetichistas. E é bom dizer que fetiche não é, e nunca será o problema, talvez a questão esteja em como o fetiche se articula com a perversidade para destruir, inclusive uma eleição e por consequência a democracia.

Succession poderia passar mais temporadas explorando toda essa dinâmica de poder e perversidade, mas felizmente, o gênio Jesse Armstrong soube a hora correta de terminar. Apesar de deixar pontas soltas, e sabíamos que seria assim, o mais importante, que era o destino das personagens principais, foi muito bem amarrado. A consolidação da tragédia de uma família que nasceu e morreu em condições precárias de amor e reconhecimento. Talvez o sucesso de Succession seja pela universalidade da história, ainda que a realidade e o contexto que ela aconteça só seja possível para o 1% mais rico da população. Ao tratar de instâncias emocionais tão primitivas, conseguiu nos aproximar de personagens tão desprezíveis, que mesmo por pouco tempo, suspiramos de alívio e simpatia por eles. Até porque nada garantiria que, se estivéssemos no lugar dos Roy, não seríamos iguais ou piores que eles.

Texto escrito por:
Alan Alves
Psicólogo e amante do cinema
@alanalveseu

Deixe seu comentário