Crítica: Firebrand - Festival de Cannes 2023
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Crítica: Firebrand – Festival de Cannes 2023

Firebrand – Ficha técnica:
Direção: Karim Aïnouz
Roteiro: Henrietta Ashworth, Jessica Ashworth
Nacionalidade e Lançamento: Reino Unido, 2023 (Festival de Cannes)
Sinopse: Baseado no romance histórico de Elizabeth Fremantle, Firebrand acompanha os conflitos no casamento de Katherine Parr, a sexta e última esposa do rei Henrique VIII da Inglaterra.
Elenco: Alicia Vikander, Jude Law, Ruby Bentall, Erin Doherty, Eddie Marsan, Sam Riley.

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Muito se fala sobre como homens tendem a ter um olhar menos empático sobre vivências tipicamente femininas, especialmente no Cinema. A teoria do “male gaze” de Laura Mulvey foi precursora dessa ideia e desse termo, em um texto que provoca debates e reflexões que perduram até hoje. Mesmo revisitado posteriormente por Mulvey, seu artigo nunca deixou de fazer sentido e eu concordo: realmente é muito raro que filmes dirigidos por homens não tenham um viés machista quando tratam de assuntos tipicamente femininos. No entanto, não é impossível.

Eduardo Coutinho com Jogo de Cena, Bergman com Persona e, pasmem, até mesmo Repulsa ao Sexo e Bebê de Rosemary, do Polanski, são exemplos de filmes cujas retratações de temas do universo feminino são feitas com maestria. É provável que vendo o filme do Coutinho, sem saber quem dirige esse documentário, você acabe achando que é uma mulher por trás das câmeras. A verdade é que, como a arte é tão complexa quanto a vida, nada é preto no branco, e mesmo quando uma regra é muito plausível, raríssimas exceções sempre existem.

Em Cannes, Firebrand acaba de se tornar uma dessas exceções e entra nesse meu hall, extremamente seletivo, ao tratar da história da sexta esposa do Rei Henry VIII (Jude Law), Katherine Parr com um tom intimista que já é típico do diretor cearense, Karim Aïnouz. Não é fácil fazer um filme de época, com orçamento milionário e duas grandes estrelas como Alicia Vikander e Jude Law se tornar tão intimista e complexo na abordagem dos personagens, mas de alguma forma ele conseguiu.

E essa forma, felizmente, fica clara. O diretor usa de planos fechados e close-ups para criar uma relação mais próxima dos personagens, ao mesmo tempo que cria um ambiente claustrofóbico. Como todas as reações são filmadas de muito perto, não há que se fazer questão de que o espectador tenha consciência do que existe no extracampo pois a Karim o que interessa está sempre ao centro: a pessoa.

Entre abusos físicos e psicológicos, a personagem de Alicia Vikander conquista a simpatia do público pouco a pouco, às vezes apenas pelo seu olhar – sem que seja necessário pronunciar uma palavra. Esse é um dos raros momentos dentro do Cinema em que um casting se encaixa perfeitamente com o trabalho do diretor.

Além das escolhas formais relacionadas aos planos que irão construir a decupagem das cenas nessa história intimista, existe a escolha formal de uma fotografia semelhante ao filme A Vida Invisível de Karim (vencedor da Un Certain Regard em 2019). Ambas feitas por Hélène Louvart, a mesma de Lazzaro Felice e outros trabalhos de Alice Rohrwacher também, usa de um granulado que preenche a tela com vida e com cor. Texturas.

Para um filme cuja história se passa há quase 500 anos, Firebrand tem, ainda, uma mensagem extremamente atual sobre a sociedade moderna e a forma como lidamos com a imagem de mulheres importantes ao longo do tempo: apagando suas histórias. O final do filme funciona como uma forma de reparação à vida das figuras históricas que como Katherine não deixaram nem um homem, nem uma guerra ficarem no seu caminho, a impedindo de fazer aquilo que acredita ser o certo.

Uma das cenas mais emocionantes do filme – além da cena em que Parr perde seu filho e suas esperanças quanto a ser perdoada pelo Rei – é muito especial ver todas as mulheres próximas à Rainha a ajudar a livrar-se de qualquer prova que o Rei possa reunir contra esta, por apoiar a reforma protestante. É um momento que traduz a noção de sororidade do feminismo, confirmado pela quebra da quarta parede no final.

Uma quebra que, pra mim, foi a melhor forma de encerrar o filme. Pois Firebrand, assim como outros filmes de Karim, ainda é sobre o que atravessa a tela e comunica sentimentos que você pensa que não vai sentir – especialmente em um drama de época. As minhas expectativas eram altas e se confirmaram. Pode até ser que Karim não leve a Palma de Ouro, o que eu acredito que seja o caso, mas é difícil pensar que o filme não seja um promissor sucesso comercial e um divisor de águas na carreira do diretor.

  • Nota
4

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