Crítica: John Wick 4: Baba Yaga
5 Claquetes

Crítica: John Wick 4: Baba Yaga

Ficha técnica – John Wick 4: Baba Yaga
Direção: Chad Stahelski
Roteiro: Shay Hatten, Michael Finch, Derek Kolstad
Nacionalidade e Lançamento: EUA, 2023 (23 de março de 2023 no Brasil)
Elenco: Keanu Reeves, Laurence Fishburne, George Georgiou, Lance Reddick, Clancy Brown, Bill Skarsgard, Hiroyuki Sanada.
Sinopse: Antes de recuperar sua liberdade, Wick deve enfrentar um novo inimigo com alianças poderosas em todo o mundo. Uma influência que transformará velhos amigos em inimigos.

.

Em que pese o gênero de ação possuir ao menos uma dezena dos mais populares e lucrativos títulos da história do Cinema, a maior dificuldade que ainda possuímos enquanto público (e também na crítica) com estes filmes costuma concentrar-se na mesma gama do gênero de terror: há uma imensa dificuldade de reconhecê-los enquanto um sinônimo de qualidade e não apenas como obras de mero entretenimento. O cinema de ação e o cinema de horror costumam estagnar em uma zona cinzenta do debate, onde os conflitos sobre a obra enquanto arte ou enquanto produto mercadológico, famosos blockbusters, parecem ser água e óleo na opinião de muita gente – nunca se misturam.

Por outro lado, os filmes de drama, de guerra e os grandes épicos, costumam passar ilesos por essa zona turbulenta dos debates públicos e alcançam um patamar alto com maior facilidade, tanto na crítica quanto para o público, pelo peso que carregam em seus roteiros, digo mais especificamente, em seus temas. Tudo isso é um erro crasso, dotado de uma interpretação limitada do que o Cinema pode ser e o que essa forma de arte pode atingir. A verdade é que, diante da tendência contemporânea de supervalorizar as histórias e a complexidade dos roteiros, a atenção à forma enquanto algo indispensável para a construção de uma obra cinematográfica tem se tornado, ironicamente, um de seus aspectos mais frequentemente ignorados. E isso é irônico porque, se considerarmos que um depende do outro e a estrutura de um roteiro bem-feito geralmente guia a construção de uma direção consistente e coerente, anular um ou outro seria anular a ideia de um filme em sua essência, desde o que o origina até o que irá finalizá-lo.

O novo filme da franquia John Wick é uma incrível obra justamente por ser o exemplo do filme que passa pela zona cinzenta do debate público que eu citei anteriormente e que revive, portanto, discussões importantes como o debate entre o roteiro e a imagem, a recente discussão acerca da supervalorização do fator “complexidade nas obras contemporâneas” e a discussão clássica entre cinema enquanto arte versus o cinema enquanto produto de entretenimento. Por unir gregos e troianos em um debate infindável sobre o cinema de ação e a sua importância, além da clara possibilidade de inventividade dentro dos clichês do gênero que são inúmeros, o filme de Chad Stahelski já é, ao menos para mim, um dos melhores do ano de 2023, quiçá da década. E existem alguns vários motivos pelos quais eu poderia começar a explicar isso.

A primeira tônica que deixa a franquia interessante e acima da média mora na diferenciação do seu estilo. Enquanto os filmes de ação hollywoodianos passaram a seguir uma estética um tanto pasteurizada, especialmente nas cores sempre sóbrias e pouco vibrantes, John Wick 4 opta por uma estética que vem dos animes e do cyberpunk, o que irá tornar as cidades de Nova York, Paris e Osaka, por exemplo, personagens vivos dentro da história, estabelecendo uma identidade única da vida noturna enquanto parte integrante do filme e do mundo paralelo que ele quer estabelecer. Essa ideia de filmar a noite enquanto um personagem acaba lembrando outra referência clara de John Wick 4: os clássicos e bem elogiados filmes de ação dos anos 90 e 00 de Michael Mann.

Tanto na forma como a noite se torna viva, vide em Collateral (2004), quanto na forma em que as cenas de tiroteios em boates se tornam uma máxima de todos os filmes da franquia, como o que acontece em Fogo Contra Fogo (1995), Chad estabelece um interessante jogo de metalinguagem com esses e muitos outros clássicos do gênero sem deixar de incorporar nisso sua própria identidade. É o mesmo que acontece, também, com todas as referências de estilo dos filmes clássicos de samurais. Embora as lutas coreografadas e o estilo muito próprio do subgênero clássico do cinema japonês já tivesse sido incorporado aos filmes de ação hollywoodianos há anos, incluindo o próprio Matrix (1999), John Wick traz consigo o mérito inquestionável de apoderar-se dessa referência sem que para isso precise isolá-la de sua origem, pelo contrário, o cinema e a cultura japonesa são tão intensamente celebrados que se torna quase impossível o espectador não querer ir atrás de mais filmes do gênero e de mais possíveis referências culturais que o filme utiliza após assisti-lo.

O mesmo acontece, ainda, com a forma como toda a franquia e, em especial o último filme, utilizam dinâmicas clássicas de videogames para deixar a obra muito mais interessante, contemporânea e inventiva. Não é de hoje que o mundo específico dos games têm adentrado a sétima arte (vide o sucesso da primeira temporada de The Last of Us), mas narrativamente, é interessante perceber como essa nova forma de arte tem sido incorporada à construção não apenas de roteiros como, em JW4, da própria imagem. A longa cena filmada em um plano zenital que combina um plano-sequência de uma sala vista de cima, por exemplo, emula de forma clara a dinâmica dos videogames. Cenas inteiras do foram baseadas no jogo Hong Kong Massacre, por exemplo. Em suma, existem momentos nesse filme onde, basicamente, é como estar jogando um videogame de 3h com o detalhe de que você não precisa mexer um botão.

Além disso, John Wick 4 mostra ter uma noção muito mais plural sobre Cinema do que “apenas” suas referências inúmeras e extremamente ricas voltadas ao gênero de ação. Logo no início da obra, Stahelski faz referência a Lawrence da Arábia (1962), um dos maiores épicos da história do Cinema – o qual posteriormente o diretor admitiu ter sido inspiração central para o último capítulo da franquia. Em menos de quatro parágrafos, só nesse texto, já é possível ver a imensa gama de videogames, filmes clássicos de ação, cinema japonês e clássicos épicos do Cinema que estão entre as principais inspirações para essa obra e esses são apenas alguns dos principais pontos que reafirmam a sua qualidade – mas que não são os únicos.

Se essa imensa gama de referências não tivessem uma boa execução, tudo isso seria em vão, apenas um aglomerado de diferentes pontos que não iriam coexistir em harmonia. Aqui é onde entra o brilhantismo técnico da direção, do roteiro, da direção de fotografia e do elenco. Para que um filme como esse, com o maior orçamento de toda a franquia, realmente se estabelecesse enquanto um sucesso de público e crítica, foi necessário que todos esses elementos estivessem em perfeita sincronia, onde a direção de fotografia, por exemplo, reforçasse a excelência da direção e da riqueza estética das referências transpostas no filme e que o elenco demonstrasse estar em sintonia com o exagerado exigido e celebrado pelo filme, a todo momento.

Tanto Keanu Reeves quanto Rina Sawayama, Donnie Yen e Hiroyuki Sanada,que para mim são os grandes destaques deste capítulo final, estão em total sintonia com o que o filme quer que o espectador sinta: a mais pura experiência que a gente espera de um filme de ação, feito para ser um blockbuster mas bem pensado e executado o suficiente para imprimir uma marca. O exagero, redundantemente, exacerbado desse filme é brilhantemente traduzido pelos trejeitos de todos os personagens e a forma como JW4 estabelece ainda mais essa atmosfera mítica do próprio John Wick, enquanto personagem (quase) imorrível e do mundo do crime ao que todos pertencem versus mundo suburbano “comum”, que parece ignorar a existência dessa grande organização, algo que é completamente verossímil dentro do microcosmo criado pela franquia e que sequer deveria ser uma questão nesse filme.

Em adição a isso, volto ao início do texto para falar sobre a estruturação do roteiro dos filmes que ao contrário do que muito vem se dizendo por aí, é realmente excelente em dar motivação para o protagonista e é mais que suficiente em argumentar a existência de todos os personagens dentro da história, finalizando e iniciando arcos de forma nada menos que satisfatória. Sendo o JW4 o filme onde o arco do protagonista se encerra, é importante dizer que, para mim, toda a sua jornada ao longo de quatro filmes evidencia – para além de um grande e diferenciado tipo de entretenimento dado o mérito da excelente técnica empregada sobre a qual já discursei suficientemente neste texto -, a jornada de um homem em processo de luto.

Enquanto JW 1 se inicia como um filme de vingança, ao longo de outros três outros títulos a jornada do personagem se transforma em algo completamente diferente, em que a vingança já não é mais o pretexto principal e sim uma forma de continuar vivo, de ter para o quê e porquê viver. Por isso, faz todo sentido que ele se torne, aos poucos, uma figura mítica que parece viver um eterno purgatório, castigado pelo sofrimento desolador de perder a única figura que lhe fazia ter qualquer apego à sua vida. Destemido por não sentir que não possui mais nada a perder, Wick quer desesperadamente sair de algo que nem sabe o que é.

Um dos maiores questionamentos dos personagens para ele é porque, em sã consciência, ele deveria voltar-se ou não contra a sua natureza, buscar ou não livrar–se de amarras antigas. O que para mim é mais do que claro que significa essa dualidade do processo de luto pelo qual ele passa desde as enormes perdas que sofreu logo no início da sua jornada. Assim, para os que procuram uma história mais profunda, talvez ver a franquia com um olhar mais alegórico sobre esse processo possa ajudar a compreender a necessidade do estilo diferenciado e das cores na construção de um mundo paralelo, verossímil à realidade construída naquele microcosmo específico.

Além do mais, partindo do ponto de vista mais específico de cinema de gênero, também faz sentido que para superar o processo de luto e finalmente encontrar a paz, JW precise expressar sua tristeza em forma de violência, algo que é não apenas comum para os homens como fruto de uma construção social histórica que tem raízes na estrutura patriarcal em que todos estão inseridos. Para os homens, em geral, a expressão de emoções como tristeza e raiva estão correlacionadas à manifestação de violência física. O que ele faz é transformar a dor que sente em uma motivação de vingança que se estende não apenas para um filme, mas para um processo de violência infinda onde a violência deixou até mesmo de servir qualquer propósito.

Por isso, pra mim, John Wick apresenta uma diversidade tão variada de nuances e possibilidades de discussões sobre Cinema, que vê-lo limitado aos debates mais reducionistas possíveis sobre forma e conteúdo, chega a ser verdadeiramente frustrante. Estamos falando de uma obra que poderia facilmente estampar uma nova era inteira de filmes hollywoodianos de ação, que irão abandonar seus formatos pasteurizados ultrapassados e abraçar uma possível explosão de cores e referências estéticas multiculturais, que vai estar provavelmente em artigos científicos e textos críticos anos daqui acerca da interseção entre filmes e videogames, além de dar para nós a possibilidade de discutir a possibilidade cada vez mais ilimitada do uso de CGI para buscar o absurdo – ao invés de puro e tedioso realismo obsessivo. No final das contas, é sobre isso que as discussões de John Wick 4 deveriam se pautar, e a nossa visão sobre Cinema no futuro mais próximo do que imaginamos, também.

  • Nota
5

Deixe seu comentário