Crítica: A Baleia
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Crítica: A Baleia

Ficha técnica – A Baleia
Direção: Darren Aronofsky
Roteiro: Samuel D. Hunter
Nacionalidade e Lançamento: EUA, 2022 (23 de fevereiro de 2023 no Brasil)
Sinopse: Um professor de inglês recluso que vive com obesidade severa tenta se reconectar com sua distante filha adolescente para uma última chance de redenção.
Elenco: Brendan Fraser, Sadie Sink, Ty Simpkins, Hong Chau, Samantha Morton.

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Polêmico, controverso e já conhecido por não ser uma unanimidade, tanto entre o público quanto entre a crítica, Darren Aronofsky volta às telas com A Baleia, um filme divisivo e denso que aborda ao menos meia dúzia de temas sensíveis dentre obesidade, compulsão alimentar, abandono parental, homossexualidade e religião. Baseado em uma peça de teatro de mesmo título, o longa provocou frenesi assim que estreou no Festival de Toronto no ano passado, criando um verdadeiro abismo, que vem se repetindo, entre aqueles que foram às lágrimas e se emocionaram enormemente com a história e aqueles nos quais o filme provocou um sentimento de revolta, permitindo todo tipo de experiência, exceto por uma boa. 

Eu estou no segundo grupo. Desde os primeiros minutos do filme, o péssimo uso do som (que fique registrado que é um dos piores que eu vi nos últimos anos dentro do Cinema), me jogou para longe do drama vivido pelo protagonista. A trilha sonora, que remete a um filme de terror, reaparece a todo instante, provavelmente na intenção de maximizar o melodrama que está em tela. Contudo, a única função que esse recurso acabou tendo em mim foi de gerar sentimentos conflituosos em relação às dificuldades enfrentadas por Charlie, dada a condição do personagem. Quando uma chave cai e vemos em seu rosto um desespero absurdo, quando ele tenta se levantar, mas não consegue, quando sua filha o rejeita proferindo os mais terríveis absurdos sobre ele, quando tudo em sua vida, mesmo as ações mais cotidianas, parecem ser um martírio, o que temos não é um olhar empático sobre essas situações, mas sim uma trilha sonora e câmera desumanizadas, bestializadas, completamente hostis a ele.

Em algumas cenas, é visualmente desconfortável perceber que o ponto de vista da câmera, que filma diálogos com outros personagens por vezes de cima para baixo, encara seu protagonista e o melodrama nessa história como algo tão animalesco. Outro ponto que contribui para isso e que imprime uma ideia um tanto superficial e abestada sobre o tema do próprio filme, é a proporção de tela em 4:3, que faz com que Charlie ocupe toda a imagem mais facilmente do que seria em Cinemascope, por exemplo. Além disso, existe um padrão irritante e muito estigmatizado na forma de retratar a compulsão alimentar, por meio de cenas grotescas, que remetem à ideia de que a obesidade e a compulsão devem ser associadas à nojeira, algo que se reforça pelos barulhos altos de mastigação, a boca sempre suja, e, como se não bastasse, cena de vômito.

Muito embora o texto de A Baleia nos leve a uma analogia inevitável entre Charlie e a história de Moby Dick, dando para alguns a possibilidade de recorrer ao argumento de que esses pontos são intencionais, correlatos à ideia do próprio título e a ideia de que o filme acontece dentro de um cenário que representa alguma metáfora para o navio, uma embarcação, o que importa para mim e é o ponto de toda essa argumentação é que eu jamais diria que nenhuma dessas intenções me parecem, de fato, boas. Primeiro, porque existe uma incoerência insuperável entre o que o texto quer que a gente sinta por Charlie, levando todos os personagens ao seu redor à única função de reforçar o quanto ele tem um olhar positivo e ingênuo sobre o mundo, tentando nos emocionar, e o que o filme acaba transpondo para a tela, que é esse medo e horror em relação à imagem dele e, segundo, porque nem sempre aquilo que é proposital deve automaticamente fazer sentido. Ou está imune ao completo mau gosto.

Para mim, o filme pode ser resumido a isso, mau gosto. Pois não há outra palavra que possa descrever o olhar completamente hostilizado que Aronofsky imprime ao seu próprio protagonista, usando todos os recursos que estão ao seu alcance na ideia de reforçá-lo. Talvez, a única pessoa que tenha conseguido ultrapassar esse mau gosto nos últimos anos tenha sido Andrew Dominik com o infeliz Blonde. Mas só, até onde consigo me lembrar. Infelizmente A Baleia recai no mesmo problema da biografia ficcional de Marilyn Monroe: ambos cineastas não compreendem a dimensão dos seus temas e possuem completa falta de tato ao abordá-los. Isso gera momentos infelizes para quem assiste, para dizer o mínimo e me faz pensar, inevitavelmente, na ideia de que a desumanização de temas relacionados à minorias é um problema latente em Hollywood, mas que geralmente não figura muitas críticas por aí (algumas que nascem do alto de muitos privilégios, por sinal).

É importante pontuar que, no que concerne à atuação de Brendan Fraser e Hong Chao, especificamente, há muito merecimento na repercussão que seus trabalhos obtiveram. Se não fosse pela dinâmica de Charlie e Liz, muito da minha conexão já mínima com o filme teria se dissolvido por completo. A relação dos dois foi, durante todo o longa, minha única motivação para terminá-lo. A experiência, no geral, me provocou uma série de desconfortos, uma fadiga excruciante e, ao final, uma revolta tão grande que se não fosse pelo vislumbre de empatia que senti nessa amizade, o saldo teria sido ainda pior.

Não sou e jamais fui uma hater dos trabalhos de Aronofsky, pelo contrário. Defendo de Requiem Para um Sonho (2000), um de seus filmes mais aceitos, até Mãe! (2017), um dos mais odiados, e estava genuinamente empolgada para A Baleia, ávida por uma boa experiência, que tinha tendência a se repetir toda vez que via algum de seus longas. Espero profundamente que esse trabalho tenha sido apenas um ponto fora da curva e que seu ritmo marcado, realismo e surrealismo, cenário mínimo, hiperdramatização e demais questões hiperbólicas, tenham me sido pouco agradáveis apenas pela forma como são utilizadas neste filme, e não que A Baleia signifique o fim da minha afinidade com o diretor.

Para além das discussões que podem se prolongar eternamente sobre gordofobia, corpo prostético e muitos outros temas que A Baleia acaba trazendo consigo, eu quero mesmo é acreditar que temas sensíveis como esse e olhares empáticos ainda existem no cinema americano, que longe da mão pesada de Aronofsky e Dominik, histórias como a de Charlie podem ser contadas de maneira mais agradável, com menos hostilidade. Tratar o profundamente humano de maneira tão desumana acaba recaindo em uma contradição difícil de engolir, que não pretende absolutamente nada além de estigmatizar e afastar as temáticas e o drama ali vivido de qualquer senso de empatia.

O que fica pra mim é um filme brutal, que escancara sua própria brutalidade quando pretende associar o corpo grande e obeso com um animal que, ainda que tenha sentimentos como um ser humano, vive uma batalha imposta pelo olhar dilacerante, o qual deixa claro que jamais poderá ser visto como tal. Porque o olhar do outro, nesse caso o olhar da câmera, é sempre desumanizador. Não importa como o filme vai tentar subverter isso, seja pelo texto, seja pela atuação de Brendan, nada faz o milagre acontecer e o diretor ainda usa tudo que está ao seu alcance para reforçar o horror e não o amor, o medo e não a compreensão. Péssima mensagem, péssimo filme, simples e triste assim.

  • Nota
2

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