Eu Cinéfilo #59: Aftersun é reencontro poético e melancólico com nossas memórias
Recém-chegado à Mubi, ‘Aftersun’ é um dos melhores filmes de 2022, e de brinde tem o excêntrico galã Paul Mescal como protagonista. Por ser um filme de memórias, temos um prato cheio para explorar vínculos afetivos, conflitos e diferenças. Revisitar memórias é um clássico do cinema, alguns sabem fazer — Steven Spielberg —, outros não — Kenneth Branagh —, por sorte a estreante diretora e roteirista em longas Charlotte Wells sabe.
No filme acompanhamos Sophie (Frankie Corio), de 11 anos, que aproveita o raro tempo com seu pai amoroso e idealista, Calum (Paul Mescal). Vinte anos depois, as lembranças de Sophie de suas últimas férias se tornam um retrato poderoso e doloroso do relacionamento deles. Paul Mescal faz um papel dificílimo ao unir amor e admiração pela filha ao mesmo tempo que sofre pelo intraduzível e Frankie Corio brilha ao incorporar de forma brilhante as descobertas próprias e intensas da pré-adolescência.
‘Aftersun’ se destaca por ter um tempo próprio. Grandes espaços de silêncio e contemplação mostram a passagem do tempo e as nuances de uma relação entre pai e filha que se intensifica à medida que o entendimento mútuo toma contornos. Silêncio e olhares comunicam mais que qualquer palavra. Flashes de momentos que dizem muito, encontros e desencontros que se complementam.
O despertar da pré-adolescência se cruza com a melancolia e a tristeza de uma vida adulta com muito passado pela frente. Sem muitos recursos para compreender, Sophie e Calum se utilizam do amor para sobreviver em tempos diferentes. Imediatamente fui levado a pensar sobre a relação com meu pai, sempre conflituosa por razão, amorosa por natureza e horizontalmente distante no tempo.
Memórias são como sonhos, sempre a nos colocar num lugar de suspensão da realidade. Por vezes essa suspensão pode ser angustiante, triste, melancólica, alegre, por exemplo. O filme é muito hábil ao brincar com essas memórias, trazendo uma sensação de angústia permanente com pouco espaço para respiros.
Existe uma atmosfera constante de término e de arrependimento, não por escolha das personagens, mas pela incompatibilidade natural de uma relação que simplesmente sabemos que não poderia ser aquilo que ela deveria. O que resta são justamente as memórias gravadas na “pequena câmera” como escape possível, disponível para um reencontro com aquilo que ficou no tempo.
O uso de imagens de câmeras antigas filmadas de forma amadora dão peso a essa história um tanto autobiográfica de Charlotte Wells, que entregou um filme íntimo, aconchegante e melancólico no melhor dos sentidos. Não é tarefa fácil costurar com esperteza o explorar de memórias construídas a partir de relações paternas, e ver uma diretora estreante criar um filme tão particular e ao mesmo tempo universal atesta essa capacidade quase mágica de concertação.
Outro cineasta genial que faz esse explorar de memórias é Steven Spielberg no seu novo trabalho, ‘Os Fabelmans’, também uma história autobiográfica da sua relação com o cinema e a família. As semelhanças desses filmes se encontram no poder do cinema de ser uma continuação concreta do sonhar, do relembrar e de elaborar o traumático.
Por fim, ‘Aftersun’ é um retrato da identificação afetiva barrada por cenas do impossível que nem sempre são compreensíveis à época, mas podem estar disponíveis para revisitar. E apesar de memórias não muito felizes terem sido evocadas, terminei num lugar mais aconchegante que melancólico quando os créditos rolaram e as lágrimas também.
Texto escrito por:
Alan Alves
Psicólogo e amante do cinema
@alanalveseu