Eu Cinéfilo #58: “Tudo em todo lugar ao mesmo tempo” mostra que
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Eu Cinéfilo #58: “Tudo em todo lugar ao mesmo tempo” mostra que todo mundo pode ter um multiverso para chamar de seu

Tem coisas que são tão criativas que reconhecemos como um clássico instantâneo assim que entramos em contato, e esse é o caso de ‘Tudo em todo lugar ao mesmo tempo’, filme dos diretores Daniel Kwan e Daniel Scheinert, mais conhecidos com Daniels, que estreou nos cinemas brasileiros dia 23 de junho. Apesar de ter gostado bastante de ‘Doutor Estranho no Multiverso da Loucura’, são os Daniels que souberam criar um multiverso de verdade. Cheio de significados, possibilidades e criativo na melhor das expressões possíveis.

De forma bastante reduzida, vou dar uma sinopse do filme, e depois o que segue talvez seja spoilers, então recomendo do fundo do meu coração que se possível assista o filme e volte aqui depois. Só saiba que, se entender com a família e fazer o imposto de renda têm o mesmo nível de dificuldade e é quase impossível dar tudo certo.

Para não entregar demais, penso ser importante saber que Evelyn, a protagonista interpretada pela magnífica Michelle Yeoh — que está incrível nesse papel — , seu marido Waymond (Ke Huy Quan) e sua filha Joy (Stephanie Hsu) são uma família, moram nos Estados Unidos e são donos de uma lavanderia. Ultimamente veem enfrentando problemas por conta da filha Joy, que é lésbica e sua mãe resiste em aceita-lá como ela é, além de terem uma relação muito distante e bastante conturbada. Eles estão prestes a cair na malha fina do imposto de renda norte americano e podem ter grandes consequências, já que são imigrantes chineses e a auditora da receita federal, interpretada por Jamie Lee Curtis parece estar a fim de ferrá-los com toda a burocracia possível que envolve declarar o imposto de renda. A partir disso, uma viagem pelo multiverso e as diversas versões da Evelyn precisarão enfrentar uma ameaça que pode acabar com a vida em todas as outras realidades.

É a partir dessa premissa maluca que envolve conflitos familiares, declaração do imposto de renda e múltiplas realidades que esse filme se apresenta como o melhor filme de 2022 e como um dos melhores filmes que já vi em toda minha vida. Como é possível um filme que mistura ação, ficção científica, romance, drama e comédia ser tão profundo, eficiente, maduro e extremamente cativante? Acabo de perceber que esse texto talvez tenha mais perguntas do que respostas, e nada melhor do que quando uma obra levanta reflexões e promove uma mudança na forma de olhar o mundo.

De maneira geral, somos produtos do que nossos pais ou cuidadores fizeram de nós ao longo da infância e adolescência, e dentro dessa relação, podem surgir questões mais fáceis ou mais difíceis de resolver. Quanto mais profundas são as marcas, mais tempo será necessário para se reorganizar psiquicamente e sair dessa necessidade de se ligar e buscar a aprovação desses pais, mesmo que isso custe toda uma vida.

Assim, podem surgir perguntas interessantes, como, temos só essa vida? Temos outras vidas dentro desse mesmo universo? E se a cada escolha que fizermos criasse outra realidade? Realidades paralelas? Multiversos? E se tudo fosse diferente, mesmo com as mesmas pessoas? Poderia ser? E se pudéssemos escolher a realidade que mais convém? Essas são algumas das perguntas que o filme levanta e tenta responder.

No fundo, para mim, esse filme fala de amor, e o amor, antes de mais nada, se manifesta na imagem que fazemos do outro, do mundo e de nós mesmos. Do que adiantaria escolher a realidade, sendo que em nenhuma delas amamos e somos amados por aqueles que realmente importam? O amor é fruto do seu tempo, e no filme é perceptível um conflito geracional, seja de Evelyn com seu pai Gong Gong (James Hong), ou de Evelyn com a filha Joy. O amor muda de geração para geração, os desejos mudam, o mundo muda. A minha forma de amar não é a mesma dos meus pais, e provavelmente, se eu tiver filhos, eles não vão amar do meu jeito, será do jeito deles e assim seguirá.

Existe um esforço intenso dos nossos pais para que sejamos muito melhor do que eles, para que possamos criar outras realidades e não se submeter às suas frustrações. Acontece que às vezes, dá a sensação de que para ser amado, é necessário se esforçar demais. Numa realidade em que é preciso se esforçar para saber tudo e dar conta de tudo e mesmo assim o amor não chega, qual é o sentido em continuar esse esforço?

Em alguns momentos pode ser mais conveniente destruir tudo que está em volta, na esperança de que, por não haver nada, acabe encontrando na destruição algum sentido existencial, preenchendo aquela essencial e primordial falta, que parece precisar, ilusoriamente, ser preenchida e evitada. É preciso tomar cuidado para que ao tentar preencher essa falta ou anular essa diferença, aquele buraco que se tentava evitar se torne infinitamente maior e mais destrutivo até não sobrar nada em nenhuma realidade. O amor é subjetivo, seu objetivo é construir, e não destruir, e pensando bem, não seria a vida de cada um de nós um universo diferente, com o amor fazendo possível transitar e nos conectar nesse multiverso que já existe?

Tudo em todo lugar ao mesmo tempo” é um filme que busca por amor, reconhecimento e libertação de um passado que traumatiza e se repete. É um filme que mostra que é possível refazer laços afetivos, fazer as pazes com nosso passado, encontrar e reconhecer nossa diferença nas formas de amar. É uma obra que, independente do universo que estivermos, nossa capacidade para amar talvez seja a mesma, e mesmo que a realidade possível não contribua tanto para que esse amor floresça, é nos pequenos espaços da falta e da diferença que o amor engaja, cria seu próprio caminho e constrói laços que se sustentam nas diferentes realidades.

Texto escrito por:

Alan Alves

Psicólogo e amante do cinema.

@alanalveseu

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