Crítica: Wakefield - A Vida em Espera (2016)
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Crítica: Wakefield – A Vida em Espera (2016)

Assisti “L’adversaire” (Nicole Garcia, 2002) em um momento muito conturbado da vida, a possibilidade da fuga me encantava profundamente, nem que a conquistasse através da repulsa à minha identidade. Nesse brilhante filme francês Daniel Auteuil interpreta um médico que mentiu a vida inteira sobre sua profissão e vagava pela cidade, enquanto sua família, inocentemente, se acolhia nessa atitude horrível e, no mesmo tempo, impactante. Algo nessa história (verídica, diga-se de passagem), chamou a minha atenção, imagino que justamente a dor e fraqueza do personagem em não ser aquele que imaginava e, numa atitude baseada no instinto e emoção, se vê afogado no mar da ilusão. Ele mente e morre; só assim renasce e começa do zero.

Mesmo não sendo um dos meus favoritos, guardo “L’adversaire” com muito carinho no coração, pois é uma obra densa que representa com exatidão uma angustia que já fui muito próximo. Essa citação se faz necessária pois assistindo “Wakefield” pude retornar a uma sensação parecida: na história um pai de família (Bryan Cranston) decide abruptamente não retornar para casa depois de um dia de trabalho. Mas ainda fica observando a sua família, passa a analisar intencionalmente a existência sem ele, desloca-se no tempo e questiona o real valor da sua presença.

Essa atitude pode soar, em um primeiro momento, arrogante e individualista, no entanto cabe ressaltar que entre espaços, o filme explora alguns conceitos interessantes sobre a rotina, relação e, principalmente, perspectiva. O protagonista volta de mais um dia cansativo de trabalho, quando o trem para – trilho e estagnação, extremamente sugestivo -, ele passa a caminhar e pensa, como o faz durante todo o longa, visto que o roteiro se baseia na narração para se desenvolver, toma uma decisão contrária à regra: se ausenta.

Todo indivíduo que já enfrentou a rotina sabe o que é esse questionamento. Somos egocêntricos por natureza, mas isso não nos impede de, em momentos pontuais, nos interrogarmos sobre o que aconteceria se não existíssemos ou se alguém nos apagasse dessa linha invisível que nos conduz para lugar nenhum. As responsabilidades que nos são entregues, as escolhas, como as pessoas reagiriam sem nossa presença? É válido o questionamento, no mesmo tempo que a resposta está muito perto da verdade dolorosa de que a vida começou, se faz e continuará. Escrevendo ou não, somos todos frutos da nossa própria escolha, somos filhos da nossa perspectiva. O mundo acaba quando não existimos. No mesmo tempo que o mundo é poderoso para reduzir-se ao fim.

Apesar de mostrar a família e o roteiro basear-se nela para sustentar seus principais dilemas, esse filme só fala sobre “um”: Howard Wakefield. É o homem que caminha em direção da catarse, questionando seus métodos, isso envolve tudo, não apenas a família. A mensagem é universal e remete à origem do homem enquanto ser social. Essa é uma obra de metáforas, nada é como soa, tenciona demonstrar sensações abstratas e constantes. A visão da diretora e roteirista Robin Swicord é delicado pois não faz julgamentos, no mesmo tempo que se rende à fáceis explicações em narrações que possuem somente esse intuito como “eu nunca abandonei minha família. Abandonei a mim mesmo”.

Se por um lado o filme é inteligente na direção de arte, de modo a complementar o estado psicológico do personagem – a janela pela qual ele observa a sua família tem formato circular, o porão que ele se abriga por “anos” começa extremamente suja e bagunçada e aos poucos fica organizada, ressaltando a inadequação do burguês em meio à simplicidade e sua gradual familiarização espacial – por outro a direção não é tão especial e acaba perdendo o ritmo em diversos momentos, principalmente no segundo e terceiro ato.

Com certeza a atuação do Bryan Cranston merece aplausos, é a sustentação, personifica a melancolia e aproxima o espectador com sua narração e presença expressivamente forte. A fotografia com tons azulados não seria nada sem sua voz passando por ondulações, transitando pelo agressivo e pouco cuidadoso, culminando no doce e inseguro.

É um filme que perde o equilíbrio entre a perfeita ideia e execução: o classicismo necessário é quebrado em alguns momentos para uma tentativa forçada de dinamismo. Mas é especial do seu modo, traduzindo muito bem a reflexão da ausência e o quanto a perspectiva é inerente à situação e contexto. Basta um pequeno detalhe (nós) estar fora do lugar, que toda uma possibilidade surge arrogante, manifestando verdades que teimamos recusar e nos dizendo o quanto somos insignificantes, embora extremamente relevantes para quem nos ama.

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