Nunca Mais: "Argentina, 1985"
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Nunca Mais: “Argentina, 1985”

“Argentina 1985”: filme necessário, duro e que nos faz refletir em vista de nossa realidade

“Nunca Mais”. Essa é a última frase do advogado Julio Strassera, em sua acusação contra nove militares argentinos acusados de sequestro, tortura e assassinato durante o primeiro julgamento nas américas e o terceiro do mundo, em que militares foram julgados por um tribunal civil devido a crimes cometidos contra a humanidade, os anteriores foram o julgamento de Nuremberg devido a crimes durante o regime nazista e o julgamento de coronéis gregos que lideraram um golpe na Grécia. E essas duas palavras faladas por Julio Strassera, brilhantemente interpretado por Ricardo Darín, resumem bem o sentimento que ficamos ao fim do julgamento, no filme Argentina 1985.

Entre os anos de 1976 e 1983, a Argentina passou por uma Ditadura Civil-Militar instituída após um Golpe ocorrido em 24 de março de 1976. Essa ditadura recebeu o nome de Processo de Reorganização Nacional, e através do chamado Decreto de Aniquilação, que foi estabelecido no governo de Isabelita Perón, era ordenado ao exército, “realizar operações militares necessárias para os fins de neutralizar e/ou aniquilar as ações dos elementos subversivos”. Esse era um plano sistemático para acabar com o terrorismo, mas foi usado ostensivamente para perseguir, sequestrar, prender, torturar e matar qualquer um que fosse considerado “subversivo”. Organizações de direitos humanos estimam que 30 mil pessoas desapareceram durante aqueles anos.

Em 1983, Raul Alfonsín, foi eleito através de eleições livres, para ser o presidente da Argentina. Em 1984, foi decidido pelo presidente eleito que os nove militares que governaram o país durante aquele período, por meio de três juntas militares, deveriam passar por um julgamento. O julgamento ficou conhecido como Julgamento das juntas, e o processo ficou conhecido como Causa 13/84. Começando em 22 de abril de 1985 indo até agosto de 1985. Em cerca de 530 horas de audiência, 839 testemunhas falaram. Entre elas parentes de desaparecidos, especialistas, testemunhas de defesa e, claro, muitos sequestrados e torturados durantes o regime.

O filme Argentina 1985 faz o recorte desse momento tão importante da história do país. Começando momentos antes da designação de Strassera para ser o promotor do julgamento, o filme faz um relato do antes, durante e depois do julgamento, e não tem medo de ir fundo nesses casos. Durante o momento dos depoimentos, por exemplo, é necessário ter estômago para continuar assistindo. Impossível não se emocionar ao ouvir o relato de Adriana Calvo de Laborde, sequestrada quando estava grávida. Ou então como não chorar com a última frase dita por María Kubik, cuja filha Maria Cristina Lefteroff estava desaparecida. Após dar seu depoimento, o juiz pergunta se ela quer fazer alguma declaração, ela fala: “Só quero saber, Excelência, se minha filha está viva ou morta”. A resposta é a mais dolorosa para uma mãe ouvir: “Infelizmente, este tribunal não tem essa resposta”. Maria Cristina, até hoje está desaparecida. Você caro leitor, imagina a dor de uma mãe de não saber onde está sua filha? Onde ela poderá prestar suas homenagens? Onde está sua filha?

Forte e contundente, Argentina 1985 não tem medo de expor os horrores da ditadura, a fragilidade da democracia argentina recém conquistada e a disparidade do que se considera justiça em um tribunal. Alguns talvez digam: ‘Ah, mas eles estavam lidando com terroristas, de guerrilhas armadas.’ Mas aqui cabe duas coisas a se falar. Primeiro, um dos sequestrados pertencia a FAP. Federação Armada Peronista? Não, Ele pertencia a Federação Argentina de Psiquiatras. Esse foi apenas um erro, mas quantos outros não devem ter ocorrido? O segundo ponto que gostaria de trazer a você, querido leitor, é uma reflexão: quem tem o direito de sequestrar, torturar e matar alguém? Será que os fins justificam os meios? Mas quais eram os fins? Acabar com o terrorismo? Mas como acabar com o terrorismo usando terror? Não estaríamos nos rebaixando ao nível dos terroristas? Quem é mais culpado: o terrorista que mata, ou um militar que sequestra, tortura e mata ilegalmente? E isso sem um julgamento. Os nove militares julgados, a saber Jorge Rafael Videla, Orlando Ramón Agosti, Emilio Eduardo Massera, Roberto Eduardo Viola, Omar Graffigna, Armando Lambruschini, Leopoldo Galtieri, Lami Dozo e Jorge Basilio Anaya, não deram aos seus “presos políticos” a chance que lhes foi dada, a de terem um julgamento justo em que foram acusados sim, mas puderam se defender.

Argentina 1985, nos faz pensar e refletir em nossa própria realidade, aqui em nosso país. Assim como em nosso vizinho, entre os anos de 1964 e 1984 vivemos uma ditadura militar, após um golpe dado em 1964. E não importa o que digam: Foi Golpe Sim!! E assim como na Argentina, no Brasil tivemos sequestros, prisões ilegais, torturas, mortes e desaparecidos. Segundo a Comissão Nacional da Verdade (http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/), 434 pessoas foram mortas ou estão desaparecidas devido a sua oposição à ditadura militar. Mas diferente do que aconteceu na Argentina, apenas em 2011, a presidente Dilma Rousseff estabeleceu a Comissão Nacional da Verdade, que investigou violações aos direitos humanos que aconteceram durante a ditadura militar. Vinte sete anos separam o fim da ditadura, até uma comissão para poder investigar as ilegalidades feitas pelo regime militar. Claro houve outras comissões, como a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos, que através de um decreto do presidente Fernando Henrique Cardoso, foi encarregada de investigar casos de vítimas fatais que haviam sido motivados politicamente. Mas, não era necessário se identificar os culpados dos abusos e assassinatos ocorridos. Ou seja, foram necessários 27 anos para que algo fosse feito. Só para se ter uma ideia, antes da Comissão Nacional da Verdade apenas 72 nomes estavam entre os mortos e desaparecidos devido a ilegalidades causada pela ditadura militar.

Diferente do que aconteceu na Argentina, apenas em 2012 veio a primeira ação criminal devido a crimes cometidos durante a ditadura (https://g1.globo.com/politica/noticia/2012/03/mp-anuncia-primeira-acao-penal-por-crime-na-guerrilha-do-araguaia.html). E a primeira condenação penal só ocorreu em 2021 (https://brasil.elpais.com/brasil/2021-06-21/pela-primeira-vez-justica-federal-condena-penalmente-repressor-da-ditadura-brasileira-e-abre-precedente-historico.html), 37 anos após o fim da ditadura. O resultado? Vemos milhares de pessoas defendendo uma intervenção militar, e vemos pessoas homenagearem e idolatrarem o coronel Carlos Brilhante Ustra, conhecido torturador do regime militar. Agora imagina se Sarney, o primeiro presidente civil e o primeiro do início da era democrática, tivesse estabelecido a Comissão da Verdade em seu governo? Os horrores da ditadura estavam frescos na mente dos brasileiros. Se o presidente tivesse tido a coragem de estabelecer essa comissão, e exigir que os culpados fossem julgados por seus crimes, a nossa realidade seria bem diferente. Só para se ter uma ideia, segundo pesquisa do Datafolha realizada em 2020 (https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/06/27/datafolha-75percent-apoiam-democracia-e-78percent-dizem-que-regime-militar-foi-ditadura.ghtml) 10% das pessoas preferem a ditadura a democracia  e para 12% tanto faz o regime, ou seja, 22% dos pesquisados não acreditam plenamente que a democracia é o melhor caminho. Se o Brasil tivesse seguido o exemplo da Argentina, tudo seria diferente.

E é aí que entra a importância histórica e social de Argentina 1985. O filme não só faz um recorte de um momento histórico importante: ele faz um alerta contra tortura, contra ditadura, contra a violência, contra o desrespeito aos direitos humanos. Não importa quem seja, todo ser humano tem direito a dignidade e a um julgamento justo, onde possa se defender. Até o mais cruel dos assassinos tem direito a um julgamento, os militares argentinos tiveram, mas suas vítimas não. E para as vítimas que sobreviveram fica a dor e o trauma, para os parentes de assassinados fica a dor da perda, e para os parentes de desaparecidos fica a dor de não saber onde os restos mortais se encontram. Mas pelo menos os argentinos tiveram um pouco de paz e justiça. E no Brasil… Bem quem sabe um dia a justiça dê um pouco de alento aos parentes e vítimas. Mas enquanto isso não acontece, apenas duas palavras ecoam em minha mente: “Nunca Mais”!

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