Crítica: O Gato Preto (1968)
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Crítica: O Gato Preto (1968)

Kaneto Shindō, diretor de tantas obras maravilhosas e à frente do seu tempo como “Onibaba” (1964), “Kokoro” (1973) e “Ilha Nua” (1960), é um dos nomes mais importantes do cinema japonês, principalmente pela forma como abordou a mulher em diversos trabalhos. Em “O Gato Preto” (1968) ele estende alguns temas desenvolvidos em “Onibaba”, de uma forma diferenciada e minuciosamente bem planejada para causar medo através da realidade grosseira, a qual, ainda por cima, critica ferozmente as tradições masculinas clássicas, principalmente a figura do samurai.

As mulheres abandonadas em casa enquanto o outro lado debruça em cima do ato heroico vindo da brutalidade, são vistas como frágeis e acessórios. Nesse caminho árduo de diferenças criadas pelo sistema, temos a primeira cena que, corajosamente, apresenta soldados invadindo um lar, dois corpos e inúmeras esperanças. Estupro e morte são o ápice da bestialidade a qual os homens representam em cena, moralmente e fisicamente. Seus olhares famintos, a expressão desleixada, a fotografia belíssima que contrasta arduamente com tudo o que se vê.

Em todos os sentidos, a substância desse exemplo de obra-prima é tão espaçosa e conforme, a narrativa é delicada, soberba no que diz respeito à construção mitológica da vingança e, com esse desdobramento, transforma as mortes em algo próximo a um rito de passagem, onde duas mulheres, além de personificações de monstros, são como guardiãs de um portal místico que separa os homens bons, dos maus.

É válido reforçar a bela fotografia preto e branco de Norimichi Igawa e Kiyomi Kuroda que, antes de mais nada, apoia-se nas sombras quase em sua totalidade para retirar os personagens do lugar comum, embriagando-os no escuro da noite e sendo pela escuridão domados. No entanto, a superexposição no corpo e rosto do primeiro samurai que surge pequeno, no canto do quadro, antecipa sua morte e ainda conduz o espectador por esse caminho estritamente filosófico banhado de sangue. Explico: a cor branca na cultura japonesa representa o fúnebre, por isso tantos filmes com fantasmas de rosto branco, vestimentas, entre outros detalhes.

O método de assassinato motivado pela vingança é sempre o mesmo, as duas mulheres mortas, metamorfoseadas em fantasmas através da amargura inocente de desmanchar-se, enganam um samurai e o seduz de modo que acompanhe a jovem solitária pela noite em um bambuzal. Aliás, o bambu é uma planta de extremos significados, muitas vezes atrelados à resistência, afinal, é uma das mais fortes que existem, chegam no limite da sua curvatura, porém não quebram totalmente. Além de ter diversas utilidades mesmo com tamanha simplicidade.

Quando as mulheres assassinam um samurai, pervertem sua imagem no imaginário popular japonês, consecutivamente para o mundo. É a modernidade que se apresenta e ironiza o classicismo, os significados da figura são fragmentadas e o diálogo é entre a mulher, natureza e jornada. O “método”, como ilustrado acima, é o mesmo e o diretor faz questão de mostrá-lo diversas vezes, sem nenhuma modificação, até que somente um samurai se diferencia ao permitir que a bela moça suba no cavalo enquanto ele, em uma atitude de cavalheirismo, caminha em sua frente. ironicamente, esse é o único samurai que desconfia da monstruosidade da jovem, ou seja, sua atitude não foi sincera, tampouco cordial, mas egoísta.

Nesse longa inesquecível que desprende-se do seu tempo e se imortaliza na história como tamanha ousadia, vide pequenas cenas de nudez que contemplam com perfeição essa abordagem feminina como resistência em um mundo sujo, todos elementos estão em sintonia para representação do estado nipônico e seus desdobramentos narrativos. Utilizam figuras clássicas, mas o desenvolvimento faz jus – mesmo que não pertença – ao movimento “nuberu bagu” que surgiu nos anos sessenta e preocupava-se com os dilemas reais, principalmente dos jovens.

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