Crítica: Häxan – A Feitiçaria Através dos Tempos (1922)
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Crítica: Häxan – A Feitiçaria Através dos Tempos (1922)

“Häxan – A Feitiçaria Através dos Tempos” (1922) possui uma energia profundamente macabra, no sentido simbólico tem enraizado em sua alma a obscuridade de um mundo reinado pela perspectiva patriarcal e revela-nos a vida distorcida, à partir dessa visão como modeladora de linearidade. Enquanto linguagem cinematográfica, o diretor Benjamin Christensen ultrapassa barreiras do seu próprio tempo, a começar por transformar esse o filme até então mais caro da Escandinávia. O custo de produção altíssimo é movido pelos efeitos especiais impressionantes para a época, bem como a decisão de filmar “Häxan” à noite, de forma que a penumbra ressalte o tom tenebroso da obra; além disso, o longa é um híbrido entre documentário e ficção, onde a linguagem – que funciona aqui como uma perfeita extensão da feitiçaria -, com desenvolvimento destoante, compõe um quadro atraente, intenso e macabro.

“O sono da razão produzem os monstros”

Uma mulher toca o braço de um padre e as sensações provocadas (interno) o credenciam para uma acusação incrivelmente comum, em um período histórico onde a perspectiva patriarcal se une com as limitações do “eu” moldadas pelo catolicismo ascendendo de modo avassalador por toda Europa, o padre vocifera: ela é bruxa! Em outro momento, é dito que a forma de saber se uma mulher é bruxa, é jogando-a (amarrada) na água, se ela boiar, é bruxa; se ela morrer, é inocente. Absurdos à parte – refletido, ilustrado, repetido e fixado aqui no Cronologia do Acaso – é impressionante, antes de mais nada, o estilo cuidadoso que Benjamin Christensen desenvolve o seu documentário mudo, mesclando informações em textos e imagens-pinturas históricas, com dramatizações pontuais. São sete capítulos, todos se complementam indiretamente, construindo um monstro admirável que se alimenta de intertextualidade – a qual, sugiro, se tratar da maior feitiçaria de todas: quando a linguagem ultrapassa barreiras impostas pelo formato do seu tempo – mas funcionam dentro de um contexto de análise de forma independente, sempre se dedicando à sintonia entre a dramatização, informação textual e imagética.

Se tratando de um documentário, é importante ressaltar que Häxan (1992) foi distribuído no mesmo ano de Nanook, o Esquimó (1922), tido como um dos primeiros documentários e um verdadeiro clássico no âmbito antropológico, e também Nosferatu (1922) que transformou em alguma instância o cinema de horror, ou seja, a obra em questão se situa no centro de dois caminhos, traduz inovações em ambos e marca sua importância na história do cinema.

A realização do filme condiz com um momento em que as mulheres na Europa lutavam pelos seus direitos, inclusive a do voto. Não envolvendo as classes mais baixas, muitas revoltas estavam acontecendo, consecutivamente muitas prisões de ativistas, conhecidas como suffragettes (sufragistas). Entre 1919 e 1921, Christensen estudou feitiçaria e culto ao demônio, principalmente com o livro “O Martelo das Feiticeiras” (1487) e peças teatrais.

“Häxan – A Feitiçaria Através dos Tempos” (1922) começa com uma longa explicação sobre o ocultismo nas civilizações antigas, principalmente egípcia, culminando na Idade Média e desse momento em diante há diversas explicações através de gravuras totalmente tendenciosas. Bruxas amaldiçoando vilas com chamas, torturas e demônios atentos, enfim, a história da arte é observada com atenção para se contextualizar o conceito de caça às bruxas, bem como o estado psicológico onde o controle é personificado pelos homens e o Clero. As dramatizações são condizentes com a crença Medieval, ao passo que em momentos pontuais sejam percebidas as enormes injustiças provocadas, mais do que isso, como um mundo projetado pelo medo limita as ações das mulheres de modo que elas abracem as acusações falsas e as absorvam como realidade.

As cenas são vistas em uma alternação entre azul e vermelho, uma questão estética que faz alusão ao expressionismo Nórdico.

A experiência de se assistir um filme com proporções e traços tão fortes como Häxan é absolutamente penetrante, faz uma transição por entre a historicidade, envolvendo o misticismo e a arte de modo que as dramatizações representam não o fato, mas as mensagens e injúrias intrínsecas ao subconsciente da época. É de se notar que as divisões dos capítulos, sendo a primeira intitulada “A Bruxa”, culminam na examinação atenciosa da histeria, a qual brilhantemente o diretor faz questão de retornar a algumas cenas anteriores de modo a relacioná-las com a doença recém-descoberta.

Hoje, entende-se que a bruxaria é inteiramente relacionada com a psicopatologia, se analisado a histeria de modo a associar com a possessão demoníaca, os caminhos do sobrenatural se fecham, restando apenas a ciência. E a conclusão de um filme de terror, estilo documental, que aborda as atrocidades ao feminino em pleno início do século XX, se dá através desse diálogo entre a ficção e o científico, uma coragem avassaladora para a época, que estreita laços entre as lutas das mulheres para a igualdade de direitos que vinham sendo efervescentes na Europa.

“Häxan – A Feitiçaria Através dos Tempos” foi proibido pela inversão em um pleno momento complexo para a história contemporânea, onde o maligno se personifica como os mesmos homens que juraram proteger o mundo da malignidade; Satã observava quieto, enquanto sua mão esquerda estendia uma rosa à Lilith.

Pois que os homens não são apanhados apenas pelo desejo carnal quando veem e ouvem outras mulheres. Diz-nos São Bernardo: “o seu rosto é como vento cáustico e a sua voz como o silvo das serpentes: lançam conjuros perversos sobre um número incontável de homens e de animais”. […] E suas mãos são como algemas para prender: quando botam as mãos numa criatura, conseguem enfeitiça-la com o auxílio do Diabo. (KRAMER; SPRENGER, 2015, p.128)

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