Crítica: Elvis (2022)
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Crítica: Elvis (2022)

Elvis (2022)

Ficha técnica:
Direção: Baz Luhrmann
Roteiro: Baz Luhrmann, Sam Bromell, Craig Pearce
Nacionalidade e Lançamento: Estados Unidos, 24 de junho de 2022 (14 de julho no Brasil)
Sinopse: A cinebiografia de Elvis Presley acompanha décadas da vida do artista e sua ascensão à fama, a partir do relacionamento do cantor com seu controlador empresário “Coronel” Tom Parker. A história mergulha na dinâmica entre o cantor e seu empresário por mais de 20 anos de parceria, usando a paisagem dos EUA em constante evolução e a perda da inocência de Elvis ao longo dos anos como cantor.
Elenco: Austin Butler, Tom Hanks, Olivia DeJonge, Helen Thomson, Richard Roxburgh, Kelvin Harrison Jr, Dacre Montgomery

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Quem estuda Cinema, em sua origem, deve saber que a história da sétima arte está diretamente associada ao circo. A manifestação artística, uma das mais antigas do mundo, foi a primeira a dar espaço para a arte do ilusionismo, aos mágicos e, também, ao cinematógrafo. Não à toa que Georges Méliès (Viagem à Lua, 1902), era um ilusionista. O fundador do Cinema nunca foi cineasta por denominação, era, antes de tudo, um mestre na arte da ilusão. Foi o primeiro a conceber a possibilidade do uso do cinematógrafo como um objeto capaz de criar espetáculos, um recurso para contar histórias que não raro escapavam à realidade. Diferente dos irmãos Lumière que percebiam o objeto como algo científico, Méliès soube enxergar além e ver potencial nas imagens em movimento, suficiente para emocionar um público.

Não muito diferente do Circo e do Cinema, o show business (termo usado neste texto especificamente para referir ao mercado da música), norte-americano também é a arte da ilusão. É um verdadeiro espetáculo, onde realidade e fantasia convergem, podendo nos levar do riso às lágrimas, em frações de segundo. O novo filme de Baz Luhrmann é, então, uma junção de tudo isso: é circo, é cinema, e é show business. Em duas palavras, Elvis é um espetáculo grandioso. Daqueles filmes que te eletrizam, comovem e envolvem tanto que suas duas horas e quarenta minutos de duração passam como se fosse um daqueles saudosos filmes de noventa minutos – hoje raros no Cinema. Para uma história que temos a sensação de já ter sido contada dezenas de milhares de vezes, em documentários, livros e mesmo outros filmes biográficos, Elvis ainda empolga e tem o mérito de fazer essa história parecer inédita devido a uma série de escolhas acertadas.

Começando pela escolha do narrador da história, no qual Luhrmann acerta por nos obrigar a perceber Elvis Presley (Austin Butler) através do ponto de vista de um narrador não-confiável. Se em O Grande Gatsby (2013) estávamos à mercê de um narrador honesto e “certinho” como Nick Carraway, aqui estamos no outro lado da moeda, “presos na armadilha” com o grande vilão da história, o Coronel Parker. Ouvimos, por quase três horas, a história de quem tanto amamos pelo ponto de vista de quem se revela ser seu maior inimigo, um personagem absolutamente odiável. Pela primeira vez na vida, vi um filme fazendo uma pessoa tão amável e adorada em seus filmes como Tom Hanks, ser um personagem passível do sentimento de ódio. Embora sua caracterização não seja das melhores, esse não foi um ponto que me incomodou. Discordo de quem disse que o ator perdeu a expressividade por trás de tantas próteses, para mim ele continuou fazendo um trabalho excepcional como um vilão digno do circo de horrores que a carreira de Presley vai se tornando.

Outra acertada escolha foi a de manter o ritmo frenético e o aspecto de fantasia com suas transições e jogadas de câmera. Não apenas porque isso imediatamente remete ao estilo inconfundível do diretor, mas porque condiz perfeitamente com o tom exagerado adotado pelo filme do início ao fim. As transições são lúdicas, parecem brincar com a ideia de sonho e pesadelo, que frequentemente vem associada em tela com o próprio circo – o que é mais um acerto. O circo, além de ter muito a ver com a própria história do Cinema, como citei no início, também pode ser interpretado de forma ambígua em tela, evocando sentimentos de medo ou de alegria no Cinema. Nas telas, palhaços já foram vilões e circos já foram fonte de horror. Sabendo disso, Luhrmann usa dessa ambiguidade circense para provocar o espectador e ilustrar, assim, que Elvis está caindo no conto do vigário, ou melhor, do ilusionista, e logo estará condenado a performar o papel do palhaço triste para um público que sempre irá querer vê-lo dançar. Triste fim inevitável. Que testemunhamos com o coração na mão, embora não seja mistério para ninguém o que ocorre ao final.

Isso fica claro em uma das suas cenas mais interessantes do filme, na qual o personagem de Tom Hanks encontra Elvis perdido na sala de espelhos e lhe oferece uma saída, não sem antes discursar com palavras que parecem ter saído de um conto de fadas da Disney, mas filmada com ares de filme de terror. Daí em diante, toda vez que seu personagem aparece, a trilha sonora segue de uma música típica de filmes de fantasia, daqueles voltados ao público infantil, como estivéssemos diante de um grande embate entre forças do bem e do mal, mesmo que racionalmente, aos nossos olhos adultos, quebras contratuais e demais nuances do mundo real tenham a tendência de deixar a linha entre esses dois conceitos bastante obscura. Contudo, mantendo o tom de fábula, nós ainda acreditamos no Elvis, o aficionado pelos gibis de Capitão Marvel Jr, para enfrentar as forças do mal do Cel. Parker, em busca da pedra da eternidade. Algo bastante ingênuo, um sonho juvenil alimentado pelo diretor.

É curioso notar essa ingenuidade no personagem de Austin Butler. Talvez por ter entrado na indústria do entretenimento tão precocemente, Elvis não amadureceu tanto quanto deveria e, por isso e também pela sua condição social desde o início, não teve muita expertise quanto ao manejo da sua carreira. Enxergava nos outros, especialmente no Coronel, bondade demais. Sonhava com o impossível e quando alcançou, já não tinha mais consciência de quem era e o que tinha feito para chegar até lá. É o retrato de vários grandes artistas que nos deixaram precocemente, acreditando ter marcado muito pouco quando na realidade foram essenciais. Butler transmite essa espécie de inocência no olhar, ao também nos passa a malícia e a coragem que o artista tinha para quebrar regras. Para alguém que não é tão conhecido pelo público, o ator tem uma excelente performance e acaba surpreendendo muita gente com seu talento – especialmente na voz. O que é, quanto ao casting, mais um ponto de acerto do filme.

Quando superadas as escolhas acertadas quanto à perspectiva da história e quanto ao tom e ao estilo adotados para o filme, faltava ao diretor superar mais um obstáculo requerido pelo público do século XXI: as discussões sociais. Para o público atual, não basta que um filme seja simplesmente bom. É preciso, frequentemente, que ele tenha um viés mais consciente política e socialmente sobre a sua própria história e, se tratando da trajetória de Elvis e da história do rock, em si política por natureza, torna-se impossível de apagar isso. Portanto, Luhrmann decide dar uma espécie de satisfação àqueles que acusam Elvis Presley de apropriar-se culturalmente do gênero musical e evoca, a todo instante, a relação do artista, que provém da sua infância e religiosidade, com a comunidade negra – sendo essas algumas das melhores cenas do filme, especialmente as em que o artista vai à Beale Street ouvir Little Richard (Alton Mason) e Sister Rossetti (Yola) cantarem.

Se na música, “quando não puder falar, cante”, no cinema, quando não puder falar, mostre. Por isso, Baz Luhrmann faz um filme que não esconde o que pensa sobre o conservadorismo, segregação racial da década de 60, impacto das mortes de Martin Luther King e John F. Kennedy na comunidade americana e a influência de B.B. King na sonoridade do que hoje conhecemos como rock, mas que antes era uma mistura de country e rythym and blues. É óbvio que muitas perguntas ainda permanecem àqueles que irão refletir por mais tempo: Elvis apropriou-se culturalmente do rock? Até que ponto a influência se torna apropriação? Se não fosse branco, teria feito o mesmo sucesso? São questionamentos que não podemos responder de forma absoluta e que sempre poderão ser levantados, inclusive pelo próprio diretor. Mas, no fim das contas, nada disso tem o poder de diminuir a contribuição política, importância e impacto que a figura de E.P. teve para a história da música mundial.

O filme, assim, é uma celebração da vida de uma pessoa que viveu de excessos, extravagâncias e exageros, mas que se manteve verdadeiramente fiel àquilo que mais amava: a música. É nesse ponto que penso que poucos seriam os diretores capazes de capturar a essência de um artista tão singular para a história como fez o diretor, no seu cinema de fábulas, de circo, de espetáculos. Com direção, roteiro e fotografia assinados por ele, tudo nas mãos do diretor acaba virando um prato cheio para a hipérbole e, por mais que eu pensasse não ser fã de todo esse aumento, que vez ou outra ele utiliza para mascarar seus pontos fracos, me vi rendida à convergência perfeita dessas escolhas tão acertadas. É fiel ao Cinema, à história dessa arte e faz isso da forma mais interessante que pode. Mais fiel à ele que pode.

Elvis é um filme para os fãs e para os descrentes, para aqueles que há tempos não sentem tanto furor em estar em uma sala de cinema por quase três horas. Uma das melhores sensações existentes na sétima arte é quando você percebe que quem está por trás daquela obra tinha muito apreço por aquela história, tanto apreço que te invade. Do outro lado da tela, do outro canto do mundo, do outro lado da história. É difícil sair indiferente depois de um final tão comovente. Um espetáculo, um show de lágrimas, risos e lembranças que nos remete àqueles que amam aquilo que fazem de uma forma tão contagiante que se torna impossível não querer olhar. Sinônimo de show business, Lurhmann acerta em cheio e traz consigo um dos mais influentes filmes biográficos dos últimos anos e, sem dúvidas, um dos mais importantes espetáculos cinematográficos deste ano.

  • Nota
4

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