A Morte da Fantasia no Cinema Hollywoodiano (artigo)
Artigo

A Morte da Fantasia no Cinema Hollywoodiano: Um Breve Panorama do Cinema Fantástico na Filmografia Americana do Início do Séc. XXI

Por Thiago Beranger (redator no Cinema com Crítica e @quartaparede.cinema)

1. INTRODUÇÃO

“RRR – Revolta, Rebelião, Revolução” é blockbuster no melhor sentido da expressão. Um filme gigantesco em duração, escala e pretensões. O longa reúne artes marciais, música, efeitos especiais e um enredo de proporções épicas que tem como base a libertação da Índia do colonialismo britânico através de uma revisita a mitos folclóricos e personagens históricos locais.

O filme chegou aos cinemas em março de 2022, sendo distribuído mundialmente pela Netflix no mês de maio e alcançando o “Top 10” da plataforma em vários países. As reações positivas demonstram haver espaço para um tipo de cinema que vem sendo cada vez menos explorado nas grandes produções hollywoodianas. Um cinema que não tem medo da mentira, que não vê problemas em soar falso e exagerado dentro da sua proposta narrativa.

Contudo, mesmo com todo o sucesso comercial e a boa recepção da crítica, são perceptíveis comentários que atribuem ao filme características como: mentiroso, falso, com efeitos especiais ruins, ridículo e diversos outros adjetivos que acabam sinalizando um paradigma da produção cinematográfica atual. O cinema está cada vez mais perdendo o poder de encantar retratando o absurdo, em prol de um realismo gráfico e narrativo que dita tendência mesmo nos gêneros essencialmente fantásticos.

2. DC X MARVEL – ABORDAGENS DIFERENTES NO CINEMA DE HERÓIS QUE DIZEM MUITO

Um bom cenário para observarmos isso são as produções de super-heróis que hoje dominam o mercado. O gênero de heróis é fruto de um contexto essencialmente fantástico. Heróis desfilam pelas telas os seus poderes capazes de feitos absurdos. Eles são, via de regra, frutos de experimentos ou acidentes científicos, aliens, magos, criaturas mágicas ou no mínimo seres humanos equipados com tecnologias tão avançadas e habilidades tão surreais que beiram a fantasia. Contudo, a abordagem desse gênero no cinema contemporâneo passa pela transposição dessas características fantásticas para um senso de verossimilhança que torne tudo crível ou “cientificamente embasado”.

Vejamos um exemplo prático do que isso significa. O cinema de heróis é dominado por duas grandes franquias/empresas que construíram seu panteão de heróis nos quadrinhos e o transpôs para as grandes telas nas últimas décadas: Marvel e DC Comics. Há uma diferença entre as abordagens escolhidas para representar dois personagens – um de cada universo – que pode ser bastante ilustrativa na discussão que quero despertar nesse texto. 

O UCM (Universo Cinematográfico da Marvel) já estava bastante consolidado quando a DC resolveu correr atrás do prejuízo e tentar construir também o seu próprio DCU. Para a missão foi contratado o realizador Zack Snyder. Existem diversos questionamentos acerca da qualidade do seu trabalho à frente do projeto, mas não quero entrar nesse mérito. O que importa é entendermos que trata-se de um diretor com traços autorais fortes, de uma concepção visual altamente estilizada. Em sua versão da Liga da Justiça, Snyder resolve abordar os personagens como “deuses na terra”. Há na própria dinâmica de encenação do diretor um certo culto a esses heróis, uma fascinação por seus corpos, movimentos e poderes, que se notabiliza na sua famigerada câmera lenta. Em especial, o Super-Homem vivido por Henry Cavill é alçado a uma posição messiânica, característica encontrada também em algumas versões do personagem nos quadrinhos, mas que Snyder leva às últimas consequências. Acontece que o Super-Homem é, em sua origem, um alienígena que só possui os poderes por conta das condições naturais do planeta Terra – algo sobre o nosso sol ser mais jovem do que o sol de seu planeta originário – e, portanto, uma característica que poderia ganhar ares verossímeis através de uma abordagem que se ancorasse em argumentos racionais. Não é por esse caminho que Snyder resolveu seguir.

Por outro lado, uma das bases do Universo Cinematográfico da Marvel em seus primeiros anos era justamente a abordagem contrária. O estúdio decidiu iniciar sua jornada através do bom “Homem de Ferro”, dirigido por Jon Favreau e lançado em 2008. O filme partia de uma premissa que deriva de temas bem próprios da dinâmica sociopolítica do mundo real. Uma organização terrorista do Oriente Médio sequestra um gênio bilionário da indústria armamentista e o obriga a construir uma arma nuclear. Os absurdos relativos às capacidades de Tony Stark (protagonista do filme) são colocados em perspectiva pelo filtro da verossimilhança, como se tudo aquilo fosse possível na “vida real”. Mas o maior desafio do UCM nesse início viria a seguir, com a inclusão de um outro herói importante na primeira fase, o deus nórdico Thor. Sim, a mitologia nórdica chega aos cinemas através do mesmo filtro realista encontrado em “Homem de Ferro”. Uma das divindades mais representativas dessa mitologia é transformada em “alien” para ser explicada. Tudo bem, aliens também são criaturas fantásticas, mas de certa forma passam por esse crivo pseudocientífico que justifica as suas existências no mundo real. Asgard, a morada dos deuses nórdicos, é retratada como um planeta distante e suas capacidades mágicas são descritas como “tecnologia avançada alienígena” para serem assimiladas pela dinâmica realista. É dessa forma que a Marvel sufoca a fantasia em seu Universo – pelo menos nos primeiros anos – moldando-a ao ceticismo bem próprio da cultura ocidental contemporânea.

Há portanto um claro contraste entre a abordagem do Zack Snyder na DC ao retratar o “alienígena” Super-Homem como um deus e a abordagem do Kevin Feige à frente do UCM, ao retratar um deus como um alienígena. Não é nem que Thor tenha sido um grande sucesso, mas o universo do qual ele faz parte foi, e segue sendo, a franquia mais lucrativa da história do cinema, enquanto o DCU respira por aparelhos já sem a liderança de Zack Snyder. Há de se refletir se essa diferença de abordagens entre os dois universos não tem alguma influência no sucesso de um e no fracasso do outro. Obviamente diversos outros fatores estão envolvidos, mas acredito que este seja um dos principais.

3. 2008 – UM ANO QUE DEFINIU CAMINHOS

É curioso que o UCM tenha iniciado justamente no ano de 2008. Esse é um ano bastante representativo na consolidação da estética do verossímil no grande mercado do cinema hollywoodiano. Alguns filmes importantes foram lançados na época e suas recepções de público e crítica indicam um caminho que fora seguido pelos estúdios nos anos subsequentes. De um lado, representando a abordagem mais realista, estavam o já citado “Homem de Ferro” e o influente “O Cavaleiro das Trevas” de Christopher Nolan. Do outro lado, representando uma abordagem fantástica de cinema estiveram as Wachowskis com o seu “Speed Racer” e M. Night Shyamalan com o “Fim dos Tempos”. 

Os dois primeiros filmes foram extremamente bem sucedidos, dando o pontapé inicial no UCM e alçando de vez Nolan ao primeiro escalão do cinema blockbuster mundial, respectivamente. Sobre o UCM já falamos bastante, mas vale a pena gastarmos algumas linhas para falar sobre Nolan como um grande expoente desse formato que acabou se tornando hegemônico. Eu não sou daqueles que detratam o seu cinema. Acho a maioria de seus filmes muito bons, mas vários deles efetivamente possuem a característica de buscar uma racionalidade fria em gêneros e premissas que seriam fantásticos por natureza. 

3.1. CHRISTOPHER NOLAN COMO EXPOENTE DE UM CINEMA FRIO E RACIONAL: UMA BREVE ANÁLISE COMPARATIVA

Para perceber basta compararmos a maneira com a qual Nolan lida com o mundo dos sonhos em seu “A Origem” (2010) com trabalhos de diretores que já exploraram essa mesma temática através de abordagens diferentes, como David Lynch. No filme do diretor britânico, os sonhos podem ser arquitetados com precisão matemática e com finalidades específicas. Eles são usados como ferramentas para que “mercenários” invadam o inconsciente das vítimas e retirem ou plantem lá informações e desejos de seus contratantes. Todas essas regras e informações são estabelecidas didaticamente para que o espectador compreenda objetivamente toda a dinâmica dos acontecimentos. Lynch, por sua vez, em seus filmes oníricos (“Eraserhead”, “Cidade dos Sonhos” e “Império dos Sonhos” são alguns exemplos), escolhe o surrealismo como maneira de expressar os desígnios do inconsciente, buscando o caminho contrário. Ao invés de dar explicações didáticas, o realizador deixa a cargo do espectador interpretar as imagens de forma subjetiva. Ele está muito mais preocupado com os efeitos psicológicos e emocionais de suas escolhas estéticas e narrativas do que em criar sentido racional para tudo o que está em tela.

Uma conclusão parecida pode advir da comparação entre a abordagem de Nolan em relação à ficção científica espacial em “Interestelar” (2014) e a abordagem de Stanley Kubrick no celebrado “2001 – Uma Odisseia no Espaço” (1968). Ainda que os dois diretores optem por certa frieza e distanciamento em suas construções narrativas, o primeiro filme é o único que sente a necessidade de simplificar conceitos da física moderna para mastigar suas proposições para quem assiste. Kubrick, por outro lado, resolve analisar as possibilidades de efeitos que a manifestação desses fenômenos ligados ao tempo/espaço poderiam ter na psicologia de seus personagens e na própria percepção do espectador.

Por fim, no próprio gênero de heróis também é notável o quão distintas são as escolhas de Nolan, Tim Burton e Joel Schumacher nas suas versões do icônico Batman. Enquanto Burton e Schumacher optam por construir mundos mais lúdicos e cartunescos, com interpretações caricatas dos personagens nas décadas de 80 e 90, Nolan vai mais uma vez pelo caminho do realismo, buscando adaptar esse universo a um contexto mais verossímil.

Não busco com essas comparações tecer uma hierarquização de quais são as melhores ou piores abordagens para os gêneros e universos trazidos à tona. Deixo claro que gosto em maior ou menor grau de todos os filmes citados neste capítulo, mas não deixa de ser bem representativo que as escolhas do Nolan tenham marcado o cinema blockbuster nesse início de século. Elas viraram quase que uma cartilha para o sucesso comercial e para a aceitação de grande parte da crítica norte-americana, tornando o cinema hollywoodiano cada vez mais cinzento e pouco disruptivo imageticamente. Gêneros fantásticos inteiros como o terror e o musical vem sendo subordinados a essa lógica limitante ou relegados ao segundo plano.

O terror ficou refém da ideia de que precisa se justificar metaforicamente para existir, é a famosa noção do “pós-horror” que vem sendo bastante criticada nos últimos anos. O musical por outro lado, perdeu muito do seu espaço, sendo classificado por alguns como um gênero morto ou descrito por certos críticos recentemente como “uma forma de tortura psicológica socialmente aceita” por conta do seu caráter fantástico. Infelizmente.

3.2. WACHOWSKIS E SHYAMALAN: CINEASTAS QUE NÃO SE ENCAIXAM NA LÓGICA DOMINANTE

Voltando ao fatídico ano de 2008, enquanto Nolan e o UCM foram absolutamente bem sucedidos, os dois outros filmes citados (“Speed Racer” e “Fim dos Tempos”) foram retumbantes fracassos de público e crítica na época – ainda que venham sendo elogiados e redescobertos por críticos e cinéfilos nos últimos anos – ambos representando uma derrocada nas carreiras de seus realizadores que no início da década de 2000 eram cotados como potenciais grandes autores do cinema americano no século XXI.

As Wachowskis e M. Night Shyamalan são cineastas bastante diferentes entre si, mas possuem também algumas características que os aproximam. Todos são notórios conhecedores da linguagem e da história do cinema, além de possuírem a fantasia em seus DNAs como realizadores. 

A dupla de diretoras responsável pelo revolucionário “Matrix” (1999) carrega na forma de seus filmes uma concepção narrativa que perpassa pela artificialidade. Isso se dá através de um virtuosismo técnico raro. Cada filme das Wachowskis busca alguma inovação em termos de linguagem, que faz com que muitos percebam seu cinema com certa estranheza. “Speed Racer” talvez seja o auge desse processo de experimentação. Um filme de temática infantil, mas que é reconhecido pela complexidade de sua montagem dentro dos planos (elas raramente cortam, priorizando maneiras criativas de transicionar de um plano para outro através de sobreposições de imagem e outros recursos do tipo) e pelos ambientes e cenários construídos através do uso de computação gráfica. Mas, ao contrário dos filmes de tela verde realizados hoje, as Wachowskis não buscam fidelidade ao verossímil no CGI, muito pelo contrário. Há uma tentativa de brincar com o impossível, de construir formas, cores e movimentos hiper-estilizados que se afastam completamente do que seria natural. Isso acaba sendo confundido por muita gente com uma falta de apuro técnico, quando se trata de uma escolha consciente e absolutamente inventiva.

Já M. Night Shyamalan tem como grande característica a busca por inserir o extraordinário em contextos aparentemente ordinários através de uma linguagem formal mais clássica. Seus personagens via de regra se deparam com elementos fantásticos em situações bem próximas das encontradas no mundo real. Seja de maneiras mais sutis, através de um menininho que vê gente morta (“O Sexto Sentido” de 1999), um pai de família que descobre ser inquebrável (“Corpo Fechado” de 2000) ou de formas mais radicais, como em um conto de fadas ambientado no pátio de um condomínio (“A Dama na Água” de 2006) ou no seu trabalho mais experimental, onde o “vento” se torna o inimigo de um filme de monstro/catástrofe (o já citado “Fim dos Tempos” de 2008). As premissas vão ficando cada vez mais absurdas, fazendo com que muita gente torça o nariz para o trabalho do diretor. A maneira abrupta com a qual os elementos fantásticos penetram as narrativas de seus filmes mais radicais geram estranhamento, muitas vezes caindo no lugar comum da crítica cinematográfica superficial que adora apontar “furos de roteiro”. Seus filmes são verdadeiros ensaios sobre a fantasia na contemporaneidade, em um momento onde o cinema procurava aquelas narrativas “nolanianas” didáticas, frias e ancoradas na racionalidade.

Ambas as filmografias – de Shyamalan e das Wachowskis – estão facilmente entre as mais interessantes do cinema americano no século XXI, mas seus realizadores foram relegados no final da década de 2000 a uma “terceira divisão” da indústria por não se encaixarem na lógica dominante, recebendo orçamentos cada vez mais modestos (com raras exceções). Felizmente nos últimos anos elas e ele vêm reconquistando seus espaços e tendo a oportunidade de contarem as suas histórias. Em 2021, por exemplo, vieram ao mundo os excelentes “Tempo” do Shyamalan e “Matrix Resurrections” da agora diretora solo Lana Wachowski (em seu primeiro trabalho sem a irmã Lilly). Ambos, infelizmente, ainda bem subestimados pelo público e por parte da crítica.

Matrix Resurrections - Yahya Abdul-Mateen II

4. UM PEQUENO MANIFESTO PELO CINEMA DO IMPOSSÍVEL

Um dos meus grandes interesses como crítico de cinema é a busca da raiz desse problema que tentei apontar durante o texto. Ainda estou longe de conseguir ler e assistir tudo o que é preciso para traçar um panorama completo acerca dessa situação, mas algo bem elementar no estudo da teoria cinematográfica sempre me deixou com uma pulga atrás da orelha. Um dos teóricos mais influentes do pensamento moderno sobre o cinema foi o francês André Bazin. Em seus textos Bazin revelava uma predileção pelo realismo, chegando a afirmar que o cinema “nunca fora inventado” porque ele teria como razão de ser retratar a realidade tal como ela se apresenta pela percepção humana, algo nunca alcançado por conta das suas limitações técnicas. Ele defende que a sétima arte estaria em evolução rumo ao “cinema total”, que seria essa capacidade de chegar cada vez mais próximo do mundo real.

Essa concepção do “realismo baziniano” tem muito mais a ver com a abordagem formal escolhida pelo realizador do que com as temáticas trabalhadas, é bem verdade. No texto “A ontologia da imagem fotográfica”, um dos ensaios mais elementares de sua obra, o autor diferencia o “realismo estético” do “realismo psicológico”. O estético seria a tentativa de se aproximar o máximo possível da realidade, empregada pelas artes plásticas. Esse realismo teria uma clara limitação, por só chegar no máximo na ilusão de uma realidade que não existe de forma concreta. A fotografia e o cinema, por outro lado, resolvem esse problema já que não se tratam de uma representação da realidade mediada pela ação humana, e sim um registro real, o que geraria o fato psicológico de satisfação do afã de ilusão, por se tratar de “uma reprodução mecânica da realidade”. O cinema, portanto, chegaria no ideal de “realismo psicológico” porque comunica à mente humana não uma ilusão do real, mas o seu registro de fato.

Esse raciocínio não dá conta de analisar as inovações técnicas que levaram a computação gráfica a uma representação tão fidedigna que se torna indiferenciável da realidade. Essa é uma crítica bastante comum ao pensamento “baziniano”. De qualquer forma, uma coisa não muda, o audiovisual – e o cinema em especial por seu caráter imersivo – é a arte que chega mais próxima do efeito psicológico descrito pelo autor. É a forma de expressão humana mais capaz de nos fazer acreditar que o que vemos em tela faz parte da realidade, ainda que esta seja falseada.

Relegar a fantasia no cinema a um segundo plano é, portanto, escantear a única maneira que o ser humano possui de efetivamente viver, mesmo que psicologicamente, o impossível. De se ver em situações que a realidade não é capaz de dar conta de levá-lo. Subestimar os gêneros fantásticos na sétima arte é privar a experiência humana de grande parte de sua graça, da capacidade de abstração, da capacidade de sonhar acordado.

Filmes como o indiano “RRR” nos convidam a vivenciar um verdadeiro espetáculo, a fugirmos um pouco da nossa realidade e nos reunir em volta de uma tela por três horas para nos divertir, nos emocionar, dar risadas e derramar lágrimas. Para confiarmos esse tempo das nossas vidas a um criador que tenha a capacidade de nos conduzir por essas emoções como se estivéssemos em uma montanha russa, que vai modulando velocidade e dinâmica ao longo de sua jornada.

Que estejamos dispostos a viver o impossível através do cinema sem que para isso precisemos necessariamente prendê-lo a um senso limitante de verossimilhança. 

Viva o cinema do impossível.

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