Crítica: Bob Cuspe - Nós Não Gostamos de Gente - 45ª Mostra de SP
Crítica: Bob Cuspe - Nós Não Gostamos de Gente - 45ª Mostra de São Paulo
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Crítica: Bob Cuspe – Nós Não Gostamos de Gente – 45ª Mostra de São Paulo

Bob Cuspe – Nós Não Gostamos de Gente – Ficha técnica:
Direção: Cesar Cabral
Roteiro: Leandro Maciel, Cesar Cabral
Nacionalidade e Lançamento: Brasil, 2021 (45ª Mostra de São Paulo)
Sinopse: Uma mistura de animação em stop-motion, documentário, comédia e road movie, que conta a história de Bob Cuspe, um velho punk tentando escapar de um deserto apocalíptico que, na verdade, é um purgatório dentro da mente do seu criador, Angeli, um cartunista passando por uma crise autoral.
Elenco: Milhem Cortaz.

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Um dos maiores e mais importantes chargistas do Brasil, Angeli ajudou, acompanhado de nomes como Laerte e Glauco, a redefinir o humor nacional com a transgressora e antológica revista Chiclete Com Banana. Entre suas criações, personagens icônicos representantes de arquétipos da cultura popular como Rê Bordosa, Wood e Stock, Mara Tara, Skrotinhos e, é claro, o punk Bob Cuspe, protagonista deste Bob Cuspe – Nós Não Gostamos de Gente, animação vencedora do Prêmio Contrechamp no Festival de Cinema de Animação de Annecy e que teve, entre suas sessões na 45ª Mostra de SP, uma acalorada exibição no Vão do Masp, com a presença da equipe e uma plateia que encheu o lugar de vida.

Angeli está envelhecendo. Angeli está em crise existencial. E assim está, também, Bob Cuspe, preso num deserto ao estilo Mad Max, que na verdade é um limbo dentro da mente de seu criador. Como Los três Amigos (representações de Angeli, Glauco e da Laerte), Bob Cuspe – agora velho como Angeli – é, também uma representação de parte do quadrinista. Estou falando, é claro, do Angeli persona, que frequente se confunde com a figura real, neste stop-motion que é também, através das confissões de Angeli, semidocumentário. A criatura está atrás de seu criador, que já assassinou Rê Bordosa. Bob Cuspe quer sair da cabeça de Angeli para matá-lo antes de ser, também, morto.

O que chama atenção logo de início em Bob Cuspe – Nós Não Gostamos de Gente é seu virtuosismo técnico. A animação dirigida por Cesar Cabral e produzida pelo mesmo Coala Filmes que realizou o programa de TV Angeli The Killer – também em stop motion – no Canal Brasil enche os olhos com cada detalhe, dos movimentos dos cabelos de seus personagens aos móveis do estúdio de Angeli, reproduzidos com uma atenção minuciosa. Milhem Cortaz concede sua voz a Bob Cuspe de forma que o personagem se torna dele, e o próprio Angeli dubla sua versão animada.

Crítica: Bob Cuspe - Nós Não Gostamos de Gente - 45ª Mostra de São Paulo

Um dos trunfos da série do Canal Brasil, em seus registros documentais, é o de tornar os devaneios e divagações de Angeli personagens próprios. O cartunista envelhece como vinho, e torna o arquétipo do artista atormentado em um ato próprio em si. Angeli abraça as alcunhas que lhe são dadas, mas se diverte com o próprio mito. Num momento, faz uma declaração clichê sobre estar descolado dos tempos. No outro, se compara ao próprio Bob Cuspe, dizendo que o mesmo é uma extensão de si mesmo. Depois, dá de ombros. Diz que isso é “coisa de moleque”. Ele ri, como se olhasse para a tela e desse uma piscadela com a consciência de que se levar excessivamente a sério não tá com nada.

Nós Não Gostamos de Gente estende essa dinâmica a um escopo cinematográfico, incluindo esse embate entre Bob Cuspe e seu criador. O diretor e as pessoas ao redor de Angeli, como sua esposa Carol – que recebe um papel aqui – possuem, também, essa consciência da mitificação. Laerte entra na brincadeira, numa adorável participação coadjuvante em que confecciona uma maquete de Rê Bordosa para o amigo. Personagens conhecidos da obra de Angeli entram e saem de cena, não só como um fan service, mas com propósito definido. E mesmo se fosse apenas com tal propósito, o que são documentários biográficos que prestam serviço à obra de um autor, senão justamente esses “serviços de fã”? Assim, a celebração da obra de Angeli se mistura com as excelentes cenas de ação, com os depoimentos, com a salada surtada de egos, superegos, depreciações e enaltecimentos vistos aqui. Cool World misturado com as obras de Charlie Kaufman. Só que mais “cool”.

“Punk is not déadi”, frase marcante de Bob Cuspe, é ressignificada aqui. Era dita compulsivamente pelo personagem justamente pelas contradições do movimento punk, pela necessidade de manter viva uma contracultura, marcada pela própria Chiclete com Banana que já foi abraçada pelo nicho. Olhando para trás, existe a sensação da nostalgia, também ressignificada, sobre os tempos de oposição desse humor subversivo dos Angelis, das Laertes. O humor subversivo de hoje é outro. A contracultura ainda existe, em tempos de Bolsonaro. Ser Punk, hoje em dia, é outra coisa. Bob Cuspe ficou preso no tempo, na mente de seu criador, que também está se reencontrando, mas não precisa provar nada a ninguém. Bob Cuspe – Nós Não Gostamos de Gente se marca além do apuro técnico ou da exaltação muito eficaz da obra de Angeli. É um filme sobre personas, mitos desmitificados, falta de propósito e aceitação dessas personas. É bem humorado. É sacana. É do caralho.

  • Nota
4

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