Crítica: Venom – Tempo de Carnificina - CInem(ação)
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Crítica: Venom – Tempo de Carnificina

Poucos personagens representam tão bem os quadrinhos dos anos 90 como Venom. Surgido como um vilão intimidador, de visual inspirado criado por Todd Mcfarlane e David Michelinie, o personagem caiu nas graças dos leitores, e sua popularidade logo fez com que os editores da casa das ideias (como o editorial da Marvel era conhecido na época) o promovessem de vilão do Homem-Aranha para anti-herói, com sua própria revista mensal. As capas metalizadas e edições especiais, o conceito do visual e ilustrações que eram colocadas como prioridade acima dos roteiros, os anti-heróis movidos a testosterona, armas gigantes e pochetes em cima de pochetes… o Protetor Letal, como ficou conhecido, não era lá um poço de complexidade, mas isso não importava. Seu aspecto extremo fazia a festa de qualquer moleque de 13 anos.

Portanto, não se engane: por mais que alguns nerds – geralmente adultos – digam que o personagem foi descaracterizado por ser um anti-herói no cinema – e ainda que ele tenha passado por diversas fases nos quadrinhos, uma inclusive inspirada no clássico O Enigma de Outro Mundo, de John Carpenter, o Venom de Eddie Brock foi por pouco tempo a “máquina assassina e sombria”, como dizem esses fãs consumidos pela nostalgia de um personagem que parecia muito mais extremo justamente por serem pré-adolescentes. Esse vilão-tornado-anti-herói precisava, agora, de um vilão, e daí nasceu Carnificina – esse sim um psicopata completo, originando fases dos quadrinhos que envolviam o Homem-Aranha e múltiplos heróis e vilões do universo Marvel, como a supersaga “Carnificina Total”.

O fracasso do primeiro Venom (2018), estrelado por Tom Hardy como o personagem-título, não foi, exatamente, por tratar com seriedade o material de origem ridículo do personagem. O filme de Ruben Fleischer (Zumbilândia) era até fiel à mitologia do anti-herói em sua HQ solo, ainda que tivesse a grande diferença de não envolver o Homem-Aranha na origem do alienígena simbionte que se atrelava ao corpo do repórter Eddie Brock (Hardy). O primeiro filme falhava por ser, em essência, medíocre. Não era um filme ruim, mas sim uma produção genérica, que não tinha nada a oferecer além da transposição do personagem às telas com um visual fiel aos quadrinhos. Parecia um filme de herói do começo dos anos 2000, de todas as formas ruins.

A surpresa de Venom – Tempo de Carnificina, é que frequentemente ele se parece com um filme de herói dos anos 2000, em sua maior parte, das formas boas. É interessante também como esta continuação é praticamente uma transposição de uma história em quadrinhos dos anos 90. Assistir Venom 2 é como ler um desses gibis mensais, um formatinho da editora Abril Jovem na época: uma experiência rápida, com predileção aos visuais, trabalhando origens convolutas num resumo rápido, como se fossem notas de rodapé por parte do editor.

Isso fica claro já na história de origem de Cletus Cassidy (Woody Harrelson) e seu envolvimento romântico com Frances Barrison (Naomie Harris), respectivamente Carnificina e Shriek, vilões do filme. A sequência pré-título é contada como se fosse uma recapitulação, com as informações essenciais ditas para nós de forma ágil e num tom meio fabular e sombrio (o hospício perto do mato, enevoado e sob a luz do luar). Após a introdução, o título do filme entra grandioso, com acordes escandalosos e triunfais de terror contraposto com riffs pesados de guitarra da trilha composta por Marco Beltrami. É uma abordagem muito diferente do primeiro filme, que trazia as exposições de roteiro e o conto de origem de seu próprio personagem como um fardo, de forma burocrática, e assim também era recebido pela audiência.

O diretor Andy Serkis faz de Venom – Tempo de Carnificina um filme que se devota ao essencial para a sua trama, e é particularmente um exemplar que se destoa, de forma positiva, da grande maioria de filmes de herói que temos hoje em dia, preocupados falsamente com a mitologia e escancarando isso com a maneira trapalhada com a qual as trabalha em cena. Assim, em seus econômicos 80 minutos de duração, temos sequências dinâmicas e incomuns para um filme do tipo, como a surpreendente montagem contada através de desenhos animados. Para um filme criticado pela curta duração, é curioso como Serkis utiliza frequentemente calmos fade-ins e fade-outs, um recurso que parece cada vez mais perder a vez no cinema pop de imediatismo clipado atual, algo que remete a uma era mais inocente no gênero.

Essa inocência permeia Venom – Tempo de Carnificina mesmo dentro do cinema satírico que ele escolhe fazer aqui: um filme que escolhe a estrutura e dinâmicas de uma comédia romântica, onde Venom e Eddie fazem esse casal disfuncional. Nesse gênero que é irônico praticamente por excelência, não se sente o sarcasmo visto em muitas dessas produções. O exemplo recente que vem a mente é O Esquadrão Suicida, uma produção competente, mas que utilizava uma espécie de escárnio com o gênero apenas para parecer mais cool, mais descolado, assim como as excentricidades formais que utilizava para nos distrair de uma narrativa muito convencional e comercial. Tempo de Carnificina é um filme mais transgressor e excêntrico em forma e estilo que o Esquadrão de Gunn, com toda a suas tripas e sangue presentes naquele filme.

Assim, sente-se na tela como o filme de Serkis se diverte com sua trama muito simples, onde o humor vem das interações de Eddie e Venom, sempre divertidas e engraçadas, ora pelas discussões paródicas de comédia romântica, ora pelo humor pastelão e físico. É um filme que troca sequências de ação (existem apenas duas grandes sequências de ação no filme) por momentos como aquele onde o simbionte, separado de Eddie, vai á uma balada à fantasia estilo glow in the dark e as pessoas acham que aquela figura alienígena de quase 3 metros é uma fantasia. Simples assim.  Há uma honestidade na forma inocente com a qual o filme se desdobra e como exige que acreditemos na situação que permeia toda a produção, algo que lembra – pontualmente – os filmes do Homem-Aranha de Sam Raimi, principalmente na ótima trilha sonora de Beltrami, expressiva que evoca Danny Elfman enquanto inclui riffs de guitarra saídos de um heavy metal, algo que combina muito com o personagem. No entanto, é o elegante blues da faixa “Venom and Blues” que surpreende. É daquelas faixas que nunca vemos no filme de herói atual, surpreendente mesmo.

A inocência permeia até mesmo a relação de Carnificina e Shriek, nessa dinâmica meio Bonnie e Clyde, meio Mallory e Mickey de Assassinos Por Natureza (mesmo pela óbvia escalação de Woody Harrelson, intérprete de Mickey no filme de Oliver Stone): o objetivo dos vilões é se casar. O clímax na igreja, então, usa a ação e suas dinâmicas para fechar o simples arco romântico do filme, na maneira paródica que resolve a relação tóxica, mas simbiótica de ambos, um clímax que parece saído visualmente desses quadrinhos dos anos 90, na noite cheia trovões e atmosfera.  

Se a maioria dos fãs atuais, do fan service que começa e termina em si mesmo, dirá que esta continuação vale mais pela cena pós-créditos, que aponta para uma conexão com universos cinematográficos de sucesso (e escancara que essa geração deve ser acima de tudo, masoquista), é a cena final de Venom – Tempo de Carnificina que representa o real triunfo do filme, divertida e inocente paródia de comédias românticas: à beira da praia, no sol otimista, na breguice sem concessões.

  • Nota
4

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