Crítica: Noite de Reis - Cinem(ação) - Cinema e Filmes
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Crítica: Noite de Reis

Em Noite de Reis, a melhor forma de pensar a realidade é por meio da fantasia.

Ficha técnica

Direção e roteiro: Philippe Lacôte
Elenco: Bakary Koné, Steve Tientcheu, Rasmané Ouédraogo, Jean Cyrille Digbeu, Denis Lavant.
Nacionalidade e Lançamento: Costa do Marfim, 2020 (31 de julho de 2021 no Brasil – Festival do Rio) 
Sinopse: Um jovem é enviado para “La Maca”, uma prisão no meio de uma floresta na Costa do Marfim, que é administrada por seus prisioneiros. Com a lua vermelha nascendo, ele é designado pelo chefe para ser o novo “Roman” tendo que contar uma história para os outros detentos.

Quando o protagonista conversa com o novo amigo enquanto se banha para a noite especial da prisão, ele decide perguntar sobre suas origens. O rapaz diz que vivia na rua, mas também conta o que fazia antes de ser um sem-teto, e diz que antes disso vivia na barriga da mãe, e antes disso estava no vento, nos animais da floresta.

“Noite de Reis” é um filme que fala sobre mitologia e realidade, presente e passado de um povo, em um vai-e-vem de histórias imbricadas. Na produção da Costa do Marfim, o cineasta Philippe Lacôte faz escolhas que conectam a proposta da narrativa com sua linguagem.

Assim que o protagonista chega na prisão MACA, famosa estrutura carcerária do país, a câmera nos mostra o “rei” do local, previamente anunciado no letreiro, discutindo com seus “súditos”. A chegada do novo habitante do local faz com que o líder o defina como “Roman”, cargo de contador de histórias para um evento incomum que os presos criaram. Roman, então, decide contar a história do criminoso que liderava seu grupo de criminosos e foi linchado pela população, não sem incrementar a narrativa com elementos mágicos e mitológicos.

A noite de reis, evocada pelo título, não fala apenas do rei da prisão, prestes a ser sucedido, mas também do passado de reis do povo africano. No cenário realista de uma prisão afastada de tudo, vemos presos atuando e cantando, como em um teatro experimental. Lacôte é realista no quadro que pinta, na prisão deteriorada, mas quase onírico na maneira como olha para aquelas pessoas e a situação criada.

Uma camiseta do Brasil, uma citação direta ao filme Cidade de Deus e takes que filmam o Roman tal qual Meirelles e Lund filmaram Buscapé, mostram a influência que Lacôte teve. A favela de Abidjan mostrada nos flashbacks não é muito diferente da favela carioca. O vai-e-vem de histórias ganha novos contornos, já que também remete ao vai-e-vem do povo africano em sua diáspora: Cidade de Deus é a história do outro que também é a de si mesmo.

Em meio a essa amálgama de histórias, inventadas e recicladas, “Noite de Reis” consegue conectar sua maneira de filmar com sua proposta: misturar realismo com fantasia, sonho com realidade e a história do outro com a história de si. Não há estranhamento nem separação clara entre os elementos contrastantes, porque é nisso que se baseia toda a narrativa (do filme e do povo marfinense): os criminosos e presos são herdeiros das crises políticas e também dos reis e rainhas, e encontram refúgio tanto na realidade do filme brasileiro quanto na magia de seus mitos.

Se a renovação dos reis e líderes é inevitável, é possível evitar novos tipos de autoritarismo. Um dos possíveis novos líderes diz que deixará de tratar os presos como súditos para tratá-los como clientes: é o novo tipo de colonialismo que tenta novas formas de exploração, e que talvez possa ser derrotado com arte e boas histórias. O único personagem branco da trama, chamado de Silêncio, opta por dar informações ao Roman, evitando uma tragédia e representando a proposta de ruptura que o roteiro apresenta.

Noite de Reis funciona como a convergência artística dos temas que se mesclam.

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*Filme visto no Festival do Rio no Telecine.

  • Nota
4.5

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