Xuxa e Woody Allen: para refletir sobre o cancelamento
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Xuxa e Woody Allen: para refletir sobre o cancelamento

Acabo de ler a mais recente matéria de Donny Correia para a Folha de São Paulo. No texto, o crítico de cinema e doutor em estética (que gravou um podcast aqui no Cinem(ação)) apresenta a trajetória do filme “Amor, Estranho Amor”, de Walter Hugo Khoury.

O filme, que teve sua primeira exibição recentemente no Canal Brasil, foi injustiçado após um incansável trabalho dos empresários da então apresentadora infantil Xuxa Meneghel. Na matéria, Donny Correia conta como o filme tentou vender fitas VHS alguns anos após o lançamento do filme, mas Xuxa já não era mais uma jovem modelo em começo de carreira, e conseguiu proibir a veiculação do filme. Ao longo das últimas décadas, “Amor Estranho Amor” foi considerado uma obra quase pornográfica e atacado por tanta gente – que sequer tinha assistido – com a pecha de “pedófilo”, que acabou se tornando uma das lendas urbanas que envolvem a “rainha dos baixinhos”.

É claro que “Amor Estranho Amor” é um filme complicado: mesmo com o lirismo que Khoury retrata a descoberta sexual de um adolescente, bem como sua relação com a mãe, o fato é que o longa jamais seria realizado nos dias de hoje, especialmente devido às leis e ao bom senso que se desenvolveu em relação à criança e ao adolescente. Mesmo assim, o filme tem sua estética, seu propósito e seu valor artístico, e por isso deve ser visto e debatido.

Agora que o filme voltou a poder ser distribuído, talvez mais pessoas possam vê-lo de maneira adequada e compreender melhor a obra de Walter Hugo Khoury, um dos mais importantes diretores brasileiros de sua geração. Sem isentá-la de críticas, é preciso analisar as complexidades de sua produção artística.

Discussão para além do “cancelamento a qualquer custo”

O relançamento de “Amor, Estranho Amor” no Canal Brasil ocorre na mesma semana em que Woody Allen concedeu uma entrevista ao programa de TV brasileiro “Conversa com Bial”. Ao longo de 45 minutos, Pedro Bial faz perguntas ao cineasta sobre sua vida e obra, sua relação com Nova York e a pandemia (e Nova York na pandemia), e adentra no assunto mais espinhoso: sua relação com os filhos e as acusações de abuso da filha Dylan Farrow.

O fato é que as acusações contra o cineasta foram investigadas e não concluíram que o fato tenha ocorrido. Reavivada durante a campanha #MeToo, a denúncia contra Woody Allen gerou revoltas a despeito de diversos elementos que levam a história para uma direção contrária: de que Mia Farrow, ex-mulher de Allen, teria utilizado a acusação para se vingar do fato de que foi traída com a própria filha adotiva.

Veja bem: a história toda ainda é muito estranha e não isenta Woody Allen de ter se aproximado de uma enteada 35 anos mais nova (ainda que maior de idade). E a misoginia e o machismo de um judeu americano nascido em 1935 estão espalhados por toda a sua obra de mais de 50 longas-metragens. A verdade é que não é crime fazer filmes misóginos e nem se relacionar com uma pessoa maior de idade que não é parente consanguíneo.

Nós somos livres para olhar criticamente para o que o diretor produziu. Somos livres para não querer assistir aos seus filmes – que de fato ficaram menos interessantes ao longo do tempo. Mas fica a pergunta: devemos condená-lo e colocá-lo ao lado de homens comprovadamente abusadores, como Harvey Weinstein e Bill Cosby? Tenho minhas dúvidas.

Refletindo sobre os casos

O que o filme de Walter Hugo Khoury e Woody Allen têm em comum? Foram taxados sumariamente por pessoas que já tinham a condenação antes mesmo do julgamento. Foram vítimas do sensacionalismo, que é pai do linchamento virtual e da cultura do cancelamento.

Há complexidades em ambos os casos. É possível discutir se a obra de Khoury explorava o corpo feminino, bem como o contexto no qual o cineasta realizou seus filmes. É possível refletir sobre as “bizarrices” de Allen e as pistas deixadas em seus filmes, que refletem sua forma de pensar.

Devemos criticar e discutir, certamente. Mas precisamos refletir se os dentes raivosos que mostramos ao rosnar não podem se fincar em nossas próprias gengivas.

Proibir, vetar e abominar são verbos que devem ser destinados aos fascistas sem coração, não aos artistas sem condenação.

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