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Feminilidade e desprendimento em base a Titanic

Um dos maiores clássicos do cinema dos anos noventa; produção tão imensa quanto sua popularidade, um verdadeiro mergulho em um notório romance – no ritmo de uma dança – o qual atravessa vorazmente uma tragédia tão forte quanto os inúmeros “fins de mundo” que a humanidade presenciou e/ou supôs. O trágico parece tão ruinoso, pois a perspectiva é de um casal intrinsecamente próximo, quase uma simbiose; mas por baixo de toda essa plataforma populista, a qual beneficia a compreensão das massas – não à toa o filme fora por muitos anos a maior bilheteria da história do cinema – existe uma complexidade nessa relação, Rose e Jack são duas faces da mesma persona e, se há um motivo, dentre várias hipóteses, para o longa ainda continuar fazendo tanto sucesso, credito esse valor ao fato de que Rose, ao se apaixonar por Jack, permite-se sentir a si sob outras possibilidades.

Titanic (1997) só fala sobre a mulher. A tragédia baseada em fatos, o romance, todos esses signos caminham em direção da protagonista não apenas para dar profundidade a sua trajetória mas para transformá-la em um objeto prestes a colidir com um desprendimento social, movido principalmente pela feminilidade, passando nitidamente pela consciência de classe.

A base da introdução do filme é o navio. Imerso, a sensação de histórias destruídas não poderia soar mais metafórico ao passo que tamanho veículo, construído pelo homem e que representa dinheiro, consumo e distinção, é apresentado pela primeira vez naufragado. Um bom conto aristocrático – mais um? – envolto de destruição, quase completamente corrompido a não ser, talvez, pela arte: a primeira preciosidade que encontram nos cantos ruinosos do navio é um desenho antigo de uma mulher, posando nua com apenas um colar.

Uma senhora, limitada pelo seu tempo e amaldiçoada – abençoada? – pela lembrança, vê no noticiário a investigação sobre os restos, mas se interessa mesmo pelo artefato obra; pela obra mulher; espelho em si refletida outro tempo.

A partir desse momento inicial, focado em homens, surge a voz que não se cala da mulher e sua perspectiva sobre um caso. Um caso meio caos, se não significasse, sob essa ótica, uma ruína que faz nascer uma nova lucidez. Lúcido é a compreensão do corpo, matéria vida e, se não bastasse, do meio que se insere; de nada adianta saber-se vivo, quando vive na morte.

É a aguda exposição do sufocamento, causado por um espartilho maldoso, acrescido por uma mãe violenta em seu carinho cuidadoso, querer fazer reciclar sua existência vã. Mulheres inseridas no contexto patriarcal não podem ser consideradas monstros, bem como jovens nascidas em tempos de controle não podem querer desejar outra coisa, senão a catástrofe.

Jack Dawson é um espírito livre, um siamês da heroína, duas faces e um só significado percorrendo a mesma plataforma desigual. Leonardo DiCaprio soa tao perfeito esteticamente, seu rosto tem a proporção angelical, constata a aproximação viva da mulher – ou que ela deveria soar hipoteticamente -, ele é ela, uma dama renascentista transvertida de homem apenas para seguir sendo livre, visto que não o fizesse caso nascesse e fosse mulher.

Ela tenta suicídio; ele vê as estrelas. Quanto mais Rose se interessa, mais ela grita: “eu posso ser algo parecido!”. Para que essa liberdade soe próxima, é necessário compreender a desigualdade como ponto crucial da vida em sociedade quando colidida com interesses do indivíduo. Rose se sente estrangulada por um sistema patriarcal que relaciona afetividade, contrato social, alianças com casamento como sinônimo de continuidade de riqueza. Enquanto os subalternos, ratos das classes inferiores do mesmo grandioso Titanic que, ironicamente, navega como há de navegar independente da classe que repousa, não possuem o que sonham os ricos, mas continuam sendo quem são.

É no momento que finalmente Rose se desprende que ela voa. Jack é apenas uma plataforma, convicto da sua harmonia que rima como uma divindade que assegura que sua irmã-amante não caia – não dessa vez. É um jogo indelicado essa tentativa-erro, durante todo o percurso há provações, como aquele em que seu antigo noivo a coloca em um barco para se salvar, mas a ternura inquietante de um olhar benevolente da sua outra parte, a faz saltar do bote e seguir, de fato, o seu coração. Permanecer sendo quem é, livre da culpa de viver não respirando.

Jack não morre em Titanic, ele apenas retorna para o seu lugar de origem, é como uma miragem santificada que, nesse caso, significa a mesma coisa que nossa protagonista. A transa no carro – novamente veículo, construído pelo homem, seria apenas mais uma, caso não viesse na posterioridade de palavras ditas que soam como “me leve as estrelas”. Ora, se Jack olha as estrelas enquanto Rose cobiça a morte, o sexo é comunhão de valores muito íntimos dessa personagem.

Jack não morre em Titanic. Rose renasce. A significância do objeto observado pode soar muito nítido quando olhamos, mesmo à distância, com as emoções. Essa é a ação que dignifica os homens diante a uma obra de arte: quando existe a ânsia em questionar o porquê de tamanha sensação. Titanic conversa com todos, justamente por procurarmos sempre uma metade de nós perdida por um mundo gigantesco; metade essa nem sempre personificado em gente, talvez em algo mais, talvez valores.

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