Um Lindo dia na Vizinhança
Em certo momento de Um lindo dia na Vizinhança, um grupo de pessoas em um vagão de metrô – crianças, adultos e até mesmo policiais – canta, para Fred Rogers (Tom Hanks), a famosa música tema de seu programa infantil, “Mister Rogers’ Neighborhood”. Apesar de ser um filme baseado em fatos e pessoas reais, e de o momento não soar, de fato, como um sentimentalismo forçado (e é isto que importa para o filme no final das contas), este que vos escreve acreditou, sem dúvidas, de que a situação certamente fora fabricada para a obra. “Um momento de união tão doce e calorosa entre desconhecidos – Novaiorquinos, ainda por cima – só poderia ter saído mesmo dessas produções edificantes feel good de Hollywood!”. Eu estava errado. Como confirmado pelo jornalista Tom Junod em sua matéria de capa da revista Esquire em 1998 (matéria que serviu de inspiração para este filme), o momento realmente aconteceu.
O que me surpreendeu em uma auto avaliação posterior – além do fato de que eu sequer hesitei em prontamente duvidar que aqueles eventos ocorreram -, foi o que esse pensamento trouxe a tona: um cinismo que fui condicionado a possuir não só como pessoa, mas também como um crítico de cinema que procura avaliar a obra com o máximo possível de racionalidade (não confundir com uma abstenção do envolvimento emocional, mas sim com saber identificar as ferramentas usadas pela narrativa através da direção e outros elementos de cena para me provocar tais sentimentos), e o fato de por vezes confundirmos o cinismo com uma espécie de esclarecimento diz muito sobre o tempo em que vivemos. É curioso notar como o novo filme de Marielle Heller (“Poderia Me Perdoar? (2018)”) parece estar sempre à beira de quebrar a quarta parede através de seus discursos, e se tal característica poderia, em outras ocasiões, apontar uma insuportável verborragia , Um Lindo dia Na Vizinhança se beneficia pelas escolhas criativas com as quais propaga tais mensagens e da eficácia da escalação de seu elenco.
Um exemplo disso é a abertura , que se inicia como um dos próprios programas de Rogers, com a mesma razão de aspecto de um televisor da época. Nessa introdução metalinguística, Rogers apresenta o protagonista do “episódio” e do filme que assistimos, Lloyd Vogel (Matthew Rhys, ótimo), personagem baseado no Junod da vida real. Com uma relação turbulenta com seu pai (Chris Cooper) – um ex-alcoólatra tentando se reaproximar após uma vida de ausência – Lloyd está cada vez mais distante de sua esposa, Andrea (Susan Kelechi Watson) com quem tem um filho recém-nascido. Vogel é um jornalista conhecido por suas matérias “sérias”, e, após uma resistência inicial a fazer um perfil de Rogers, encara o trabalho como uma oportunidade de entender (e quem sabe, desmascarar) quem o apresentador é por baixo do gentil e celebrado Mr. Rogers que encanta as pessoas em seu programa. Nessa abertura lúdica, é como se Rogers nos convidasse a ver o mundo da forma que ele vê, e se essa escolha por parte da diretora e seus roteiristas (Noah Harpster e Micah Fitzerman-Blue) – assim como algumas transições de cena ao longo do filme que transformam a cidade em maquetes como aquelas que vemos no programa de Rogers – poderia aproximar a obra a algo mais fabulesco ou fantasioso, elas funcionam em contraponto com os temas mais densos da vida de Vogel e criam uma coesão geral eficaz, como uma homenagem ao legado de Fred e seu programa.
Mas quem foi Fred Rogers? Pouco conhecido no Brasil, o apresentador é uma dessas personalidades do imaginário popular americano mais celebradas. Em “Mr. Rogers Neighbourhood”, seu programa educativo de 30 minutos que foi exibido de 1968 até 2001, o apresentador falava para os mais novos, mas não podemos dizer que seu programa era estritamente infantil: com um controle criativo enorme sobre o que era exibido, Rogers discutia – com fantoches, canções e situações vividas no cotidiano de seu personagem – temas complexos como solidão, morte e preconceito de uma maneira sensível, sem menosprezar a inteligência dos pequenos. Apesar de ser religioso, ele não utilizava seu programa para pregá-la insidiosamente, o que é apenas mais admirável se considerarmos a idade de Fred e o período no qual seu programa foi exibido. Todas essas características são abordadas no filme, como no momento em que a esposa de Rogers (Maryann Plunkett) rejeita o adjetivo de “angelical” que lhe é atribuído por Lloyd, e enfatiza que o apresentador também possui seus demônios, e a diferença é como escolhe lidar com eles.
Um Lindo dia na Vizinhança se encontra constantemente nessa exploração de quem é Fred Rogers, e o filme se beneficia de utilizar as tentativas de entrevistas de Vogel (e a curiosidade que a audiência partilha com o jornalista) como oportunidades de revelar cada vez mais sobre a personalidade de Rogers sem que isso soe excessivamente didático, e sempre com um propósito narrativo, visto que, de um ponto de vista estrutural, todas as demonstrações de afeto e gentileza por parte de Fred servem para influenciar positivamente a vida de Lloyd – o verdadeiro protagonista -, mudando suas percepções e portanto progredindo o seu “arco de personagem” . Normalmente, humanizar alguém significa atribuir camadas à personalidade da pessoa e até mesmo revelar pequenos defeitos que a tornaria mais real, mais “crível”. No caso de Rogers, isto poderia significar um desafio para o filme, já que a empatia e bondade do mesmo revela-se cada vez mais espontânea, e isso poderia ser confundido como unidimensional. Para fugir disso, a diretora inteligentemente inclui pequenos momentos – a maioria silenciosos e quando o apresentador se encontra sozinho – onde Fred pode ser vulnerável, como aquele perto do encerramento, onde o mesmo toca piano e se deixa perder descontroladamente nas notas musicais.
Tais momentos só funcionam tanto, é claro, por causa de Tom Hanks e sua interpretação. Associado normalmente com os papeis de pessoas bondosas e “comuns” que interpreta – algo que parece vir de sua própria personalidade extra-filme -, a escalação de Hanks como Rogers é dessas que soam ao mesmo tempo perfeitas e preguiçosas, mas diminuir a eficácia de sua performance apenas por tais motivos seria um desserviço com o trabalho realizado aqui pelo ator: ao invés de investir numa performance de maneirismos ou mesmo tentar imitar a voz de Rogers – o que o aproximaria de uma caricatura do original, como o risível Freddie Mercury de Rami Malek (que levou o Oscar de melhor ator pelo papel) -, Hanks pega do apresentador apenas o necessário, como o tom de voz calmo e compreensível do mesmo. Ao mesmo tempo, a direção de Heller permite que Hanks performe momentos pequenos que escancaram uma certa complexidade, como quando rebate os comentários passivo-agressivos de Vogel com calma, mas olhares sofridos de compaixão e mesmo seriedade que explicitam como a bondade de Rogers não vem de uma ingenuidade em relação às pessoas; pelo contrário, demonstra uma consciência – e talvez identificação – que só torna o apego à preservação dessa empatia por parte do mesmo mais admirável, e se mencionei previamente neste texto essas constantes “quase quebras da quarta parede”, é um atestado do talento de sua diretora que ela reserve essa quebra de fato a um momento muito especial – e francamente catártico não só para Vogel, mas também ao público – onde o filme reserva um minuto de silêncio literal a pedido de Rogers, culminando no plano onde ele olha diretamente para nós.
Inicialmente, Um Lindo dia na Vizinhança pode ser visto como mais um desses veículos oscarizáveis que possuem como maior atrativo a interpretação de seu protagonista, um ator já estabelecido, que geralmente muda características físicas para compor o personagem. No entanto, o mais novo filme de Marielle Heller se diferencia destes, funcionando como uma sincera homenagem à obra de Fred Rogers, mas também um lembrete dos valores que o mesmo propagava sem medo de ser taxado como piegas, abordando esses temas com a mesma sensibilidade que o apresentador fazia em seu programa.
Após o término da sessão, uma memória muito específica me veio à mente. Após ser demitido do tradicional programa de entrevistas The Tonight Show em 2010 – apenas um ano após sua contratação -, o apresentador e comediante Conan O’Brien, emocionado, fez um discurso na sua última noite à frente do programa: “Tudo que peço é uma coisa, particularmente para os mais jovens. Por favor, não sejam cínicos. Eu odeio cinismo. Para registro, é minha característica menos favorita, e não leva a lugar algum. Na vida, ninguém consegue exatamente o que eles pensaram que conseguiriam, mas você trabalha duro, e é gentil, coisas incríveis acontecerão. Eu estou dizendo a vocês, coisas incríveis acontecerão. Eu estou dizendo. É apenas a verdade.”
Talvez seja fácil – e até insensível – dizer esse tipo de coisa quando se é cercado de privilégios. Mas algumas coisas, nessa situação, chamavam atenção: Conan O’Brien havia acabado de falhar. Ele fracassou no emprego do qual sempre foi vocal em caracterizar como o “emprego de seus sonhos” enquanto comandava seu outro programa. E ali estava alguém fragilizado, com futuro profissional incerto, rompendo qualquer barreira de ego – ou do que as pessoas acham que é “orgulho” – num raro momento de franqueza entre apresentador e público -, pregando à favor de algo tão básico quanto empatia. Após a demissão, Conan continuou pagando, de seu próprio bolso, o salário de todas as pessoas que integraram a equipe do programa (muitas destas pessoas haviam vendido suas casas e se mudado de Nova York – local onde ele apresentava seu antigo talk show- para Los Angeles por conta do emprego), que haviam sido demitidas junto com ele.
São de pessoas e atitudes como estas que precisamos hoje em dia mais do que nunca, e é uma pena o fato de precisarmos, também, de filmes como Um Lindo dia na Vizinhança para que nos lembremos disso.