Crítica: Honeyland – 43ª Mostra de São Paulo
Honeyland venceu os prêmios de Melhor Documentário e Melhor Filme Estrangeiro da 43ª Mostra de Cinema de São Paulo.
Ficha técnica:
Direção: Tamara Kotevska, Ljubomir Stefanov
Nacionalidade e Lançamento: Macedônia, 29 de agosto de 2019.
Sinopse: Existe uma regra na apicultura: deve-se pegar só metade do mel, e deixar o resto para as abelhas. Hatidze, a última caçadora de abelhas da Europa, respeita religiosamente essa condição. No entanto, quando novos apicultores chegam para trabalhar em sua região e não seguem a regra, o equilíbrio do ecossistema desses animais é ameaçado. Hatidze precisa se esforçar para persuadi-los a seguir os pilares elementares para a sobrevivência das abelhas.
Uma imagem constante no documentário Honeyland, queridinho pelos festivais que passou (vencendo inclusive o Grande Prêmio do Júri da seção World Cinema de documentários no Festival de Sundance) e indicado da Macedônia para concorrer a uma vaga ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, , é a de sua protagonista, Hatidze, caminhando em meio à natureza em grandes planos abertos, transformando-a num pontinho dentro do quadro que capta a grande e inabitada área ao seu redor, no Norte da Macedônia, perto à vila na qual mora sozinha com sua mãe. Nestas imagens, ao invés de uma isolação da mulher, temos a unificação não só figurativa, mas literal de Hatidze com a natureza.
Com 50 anos, Hatidze cuida de uma colônia de abelhas. Com o dinheiro feito do mel coletado, compra remédios para sua mãe – doente, com uma ferida exposta na lateral de seu rosto que a cega parcialmente – e mantimentos necessários, como frutas. No barraco onde moram, não há luz ou encanamento. A existência miserável que levam não parece incomodá-las, ainda que tenham consciência do tipo de vida que levam já há um bom tempo, provavelmente durante a maior parte de duas vidas. É mencionada a morte das irmãs de Hatidze ainda na infância, mas não temos mais informações sobre a causa dos óbitos. Diante dessas condições, a protagonista tem apenas a mãe, e suas abelhas, tratadas como verdadeiras amigas. “Metade para mim, e metade para vocês”, ela diz ao deixar o resto do mel próximo ao enxame, nessa coexistência pacífica.
Apesar do isolamento, não há uma aversão ao contato social por parte de Hatidze. Quando se desloca para uma feira numa área mais habitada da Macedônia, para vender o mel coletado, ela puxa conversa, brinca e negocia com os demais comerciantes, e é comovente como, apesar das condições financeiras da mesma, ela utilize uma parte do dinheiro conquistado para comprar tinta para cabelo – numa indulgência de vaidade como qualquer ser humano.
A rotina da humilde mulher é perturbada com a chegada de uma família itinerante, composta por um pai, uma mãe, sete crianças e 150 vacas. Se logo esperamos um atrito entre a existência silenciosa de Hatidze e o caos barulhento da família, nota-se de início uma harmonia inesperada: a moradora brinca com as crianças, desenvolve uma relação maternal com um dos garotos e ensina o patriarca, Hussein, sobre apicultura. Quando ele decide ingressar no negócio da coleta de mel, o único conselho de Hatidze – consciente de que se coletada toda a quantidade de mel, as abelhas de Hussein atacarão a colônia dela em busca de mais – é o mesmo que toma -por outros motivos -pra si mesma: “metade para você, metade para elas”. Conselho que não tarda para ser ignorado por Hussein, e então emerge o conflito.
Mais do que o conflito, o que temos aqui é uma espécie de microcosmo que representa a relação do ser humano com a natureza, conforme a família esgota os recursos naturais da vila e do resto ao redor. Os “intrusos” não o fazem com maldade, mas sim por causa de lições passadas através de gerações, de noções muitas vezes mal interpretadas do que significa prosperar ou sobreviver. Assim, a presença da família causa um desequilíbrio no meio ambiente que coloca a própria sobrevivência da protagonista em dúvida.
Adotando um registro documental de não interferência no que se vê em tela, os diretores Tamara Kotevska e Ljubomir Stefanov acompanharam a vida de Hatidze por 3 anos. O que mais chama atenção em Honeyland, à parte de sua amável e fascinante protagonista, é a narrativa da produção, que, mesmo dentro de um documentário, possui atos bem divididos e momentos dramáticos extraídos da própria realidade que são mais eficazes do que muitas ficções. No entanto, algumas dúvidas se levantam no meio do caminho e mesmo após o encerramento da projeção, quando os ânimos e envolvimento emocional se acalmam: os cineastas tinham consciência prévia da chegada da família, já que é tudo registrados em ângulos planejados, que captam todos os diálogos e interações com uma precisão conveniente? há uma clara ficionalização que soa em retrospecto um tanto quanto desnecessária, como a inclusão da música “You Are So Beautiful”, que aparece em dois momentos da “trama” construída e acabam forçando um sentimentalismo que já era presente durante toda a narrativa. É uma forçação talvez proveniente da percepção de seus diretores sobre o próprio feito alcançado, através do arranjamento do material captado durante esses três anos, que se transformaram numa história empática e emocionante que nem mesmo eles poderiam ter imaginado.
Tais “manipulações”, no entanto, não são suficientes para ofuscar a jornada principal de sua protagonista – maior que o mundo – e o universo ao seu redor. Porque apesar dos pesares, estes registros nos apresentam a uma realidade inimaginável e desconhecida por muitos e tornam Honeyland, antes de um conto preventivo sobre o meio ambiente ou uma obra que deva ser admirada por seus méritos como trabalho documental, uma lição de humildade.