Coringa, Joker, The Boys e as traduções - Cinem(ação)
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Coringa, Joker, The Boys e as traduções

Recentemente, em virtude do lançamento do filme Coringa, um debate surgiu na internet: o uso da palavra Coringa como tradução para Joker. Isso porque uma pessoa de Portugal chegou a escrever no Twitter algo como: “a prova de que brasileiros são estúpidos é que chamam Joker de Coringa” (não encontrei a publicação original, e isso não vem ao caso).

Logo em seguida, alguns brasileiros responderam à provocação com lembranças de traduções de títulos de filmes que em Portugal ganharam nomes considerados igualmente “estúpidos”, o que acende um debate acalorado (e por vezes divertido) sobre como uma cultura diferente (ou estratégias de marketing diferentes) encontram outros caminhos para adaptar termos de uma língua a outra – e quando esta língua é a “mesma”, os paralelos ficam interessantes.

Antes de falar sobre a nossa língua (a última flor do lácio, inculta e bela) vale destacar que o nome do vilão do Batman, em espanhol, é Guasón, palavra que significa “gozador, debochado, brincalhão”, e os países da América Latina utilizam este nome, diferente da Espanha, que se mantém com o nome original em inglês. Fica a informação para refletir.

Títulos e nomes em português e em “brasileiro”

Um dos exemplos dados a respeito de títulos de filmes são de longas um pouco mais antgos. O filme “Vertigo”, de Alfred Hitchcock, virou “Um Corpo que Cai” no Brasil e “A Mulher que Viveu Duas Vezes” em Portugal: a crítica está ao fato de que o surpreendente plot twist do filme é revelado já no título.

O mesmo ocorre com “Planet of the Apes”, de 1968, que virou “Planeta dos Macacos” no Brasil e “O Homem que Veio do Futuro” em Portugal. Os tradutores portugueses da época deviam gostar de spoilers. De qualquer forma, a tradução portuguesa não perdurou nos remakes realizados anos mais tarde.

Também gosto de lembrar que o filme “To Kill a Mockingbird” (de tradução difícil) se tornou “O Sol é Para Todos” no Brasil e “Na Sombra e no Silêncio” em Portugal. Anos depois, quando o livro foi lançado após o filme, a versão brasileira (bastante tardia) manteve o título usado no cinema, enquanto os editores portugueses optaram pelos títulos “Por Favor, Não Matem a Cotovia” e “Mataram a Cotovia” nas duas traduções já publicadas no país.

O “certo” é Joker ou Coringa?

Tanto as pessoas que dizem que Coringa é “estúpido” quanto as que dizem que chamar de Joker é “pagar pau para gringo” estão erradas. Manter nomes originais ou adaptá-los é uma questão de escolha dos tradutores, e não há certo ou errado. Uma matéria do jornal “Gaúcha ZH” conta um pouco de como foi a criação do nome Coringa no Brasil, que optou pelo termo com base na carta de baralho, mas que seria “Curinga”, e o nome foi adaptado para que não surgissem, nas separações de sílabas comuns em balões de HQs, o indesejável palavrão que a primeira sílaba formaria.

No filme de Todd Phillips, a forma como a palavra é usada faria mais sentido no original, já que “Joker” significa “piadista, fanfarrão, gozador”, ou seja, algo parecido com o termo em espanhol. Quando o apresentador diz “this joker”, ele quer dizer “este piadista”, e na fala a palavra “coringa” não faria sentido nem mesmo quando o personagem opta por se apropriar do nome. No entanto, o trocadilho também não funciona para o caso de manter o nome original em inglês. Felizes os falantes de espanhol das Américas, que não precisarão ver o trocadilho do filme se perder.

Mesmo assim, é interessante notar que o termo Coringa pode fazer sentido dentro de um contexto mais filosófico, já que a carta do baralho funciona como algo “externo” e “fora das regras”, o que combina com a função de “agente do caos” que o personagem traz em sua essência.

Títulos, nomes e a importância de respeitar traduções

Muitas pessoas trouxeram à tona algumas traduções de títulos de filmes em Portugal como se estas fossem problemáticas, quando apenas evocam vocábulos com significados diferentes. O filme “The Girl on the Train” virou “A Garota no Trem” em terras tupiniquins, enquanto é chamado de “A Rapariga no Comboio” em terras lusitanas: é exatamente o mesmo significado, já que em cada país se convencionou usar palavras diferentes ao longo do tempo.

“Inglorious Basterds” virou “Bastardos Inglórios” no Brasil, perdendo a brincadeira original que trocava uma letra da palavra “bastards”, enquanto que o título português “Sacanas sem Lei” muda muito, mas soa mais irônico aos lusitanos, mantendo uma ideia original de se ter um título com alguma brincadeira.

Já a comédia com Adam Sandler “Grown Ups”, que seria literalmente algo como “crescidos” ou “adultos”, foi adaptada para “Gente Grande” no Brasil, enquanto em Portugal ficou “Miúdos e Graúdos”, título que deixa mais claro que o original o quanto os personagens adultos são infantis. Vale lembrar que os termos ‘graúdo’ e ‘miúdo’ são palavras bastante comuns em Portugal, tanto que a canção “Garotos”, do cantor Leoni, foi adaptada em Portugal pela banda D.A.M.A. como “Miúdos”.

Outra tradução famosa do filme que no Brasil é “Como se fosse a primeira vez”

Quando sabemos a respeito das questões que envolvem a tradução, bem como a perda e o ganho que uma escolha feita por um tradutor pode trazer, passamos a respeitar mais as traduções. No caso de nomes de filmes, ainda precisamos levar em consideração que a decisão final é do marketing, já que o título de um filme é muitas vezes o principal fator para atrair público. O próprio “O Sol é Para Todos” ganhou esse título porque, provavelmente, o filme anterior de Gregory Peck, na época, levara o título de “A Luz é Para Todos” no Brasil, tendo levado os distribuidores a apostarem que o público acreditaria estar diante de uma continuação (trata-se de uma interpretação minha baseada em pesquisas, já que não encontrei algo que explique oficialmente a escolha do título). Foi um processo parecido com o do longa “It’s Kind of a Funny Story”, estrelado pelo ator Zach Galifianakis. Este filme foi chamado de “É uma Espécie de… Comédia” em Portugal, e no Brasil ganhou o título de “Se Enlouquecer, Não se Apaixone”. O título brasileiro faz referência clara ao “Se Beber, Não Case”, filme anterior de Galifianakis, que aliás ganhou em Portugal a tradução literal do original: “A Ressaca” (e cujo diretor é o mesmo do filme Coringa… ou Joker, se você for português).

Nomes de super-heróis e vilões: a síntese das escolhas de traduções

Traduzir pode ser algo muito difícil e os debates e estudos sobre o assunto são infinitos. Livros como “Finnegan’s Wake”, de James Joyce, e “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, exigem trabalhos hercúleos de grandes tradutores para conseguirem adaptações apropriadas. A palavra “Riverrun”, criada por Joyce, foi adaptada para “riocorrente”, “rolarriorana” e “correorrio” nas diversas traduções ao português. Enquanto isso, a palavra Nonada, que inicia a obra do autor brasileiro, foi traduzida ao inglês como “It is nothing”, sem a criação de um neologismo.

Mas não é só nas grandes obras literárias que isso acontece. Os nomes de super-heróis e supervilões são uma boa forma de analisar como as escolhas dos tradutores podem ser baseadas em significados e até mesmo sonoridade.

Alguns super-heróis até mudam de nome ao longo dos anos ou ganham variações, como Superman e Super-Homem, ambos aceitos em diferentes produções. Outros super-heróis ganham traduções literais que funcionam, como é o caso de Lanterna Verde para Green Lantern ou Capitão América para Captain America. Talvez a maior dúvida fica para as “não traduções”: Wolverine poderia ter sido adaptado para algo que remetesse a lobo (Luporino?), o Flash poderia ter sido Raio, Hulk poderia ter sido adaptado (Brutamontes?), bem como o Batman nunca recebeu o nome de “Homem-Morcego”, provavelmente pela sonoridade das duas sílabas curtas.

Uma das traduções diferentes mais aceitas para os super-heróis foi Demolidor. A escolha deve ter sido difícil, já que “Daredevil” faz referências a um diabo (devil) que ousa fazer algo diferente (dare), em uma clara referência especialmente à religiosidade do personagem. Os tradutores, no entanto, preferiram manter algo que remetesse às duas letras D no uniforme, e optaram por respeitar a sonoridade que se tem em “Demolidor”.

A série “The Boys” e os super-heróis mais recentes

Quando falamos de traduções canônicas, ou seja, já aceitas por todos após muito tempo de uso, não há reclamações (ninguém reclama do nome do Demolidor hoje, mas certamente reclamaria se tivesse internet e o acesso à informação dos dias atuais quando da chegada da primeira tradução). Portanto, é possível que super-heróis mais recentes possam ser mais questionados.

Um exemplo que podemos usar é o da série The Boys, que tem nomes novos de sátiras de super-heróis. A produção, vale ressaltar, não foi traduzida para Os garotos, Os meninos ou Os miúdos. Permaneceu com o mesmo título.

É claro que a série da Amazon pode ter mantido algumas escolhas e mudado outras da tradução dos quadrinhos, mas a proposta aqui é apenas observar os nomes que vemos ao longo dos episódios.

Billy Butcher (Bruto)

Butcher pode significar açougueiro ou carniceiro. A tradução para Bruto é uma escolha boa, porque mantém a sonoridade do original e traz um sentido semelhante. O problema é que trata-se do sobrenome do personagem, e isso pode soar estranho principalmente quando se referem à esposa do personagem. Isso pode ser levado em conta ao traduzir algo.

Homelander (Capitão Pátria)

Homeland significa pátria ou terra natal. Homelander seria um termo difícil de traduzir, e aqui há uma referência um pouco diferente na tradução. Afinal, o personagem da série é claramente inspirado no Super-Homem. No entanto, por ser um símbolo para seu país, a tradução fez bem em remeter a um outro super-herói igualmente significativo para os Estados Unidos: Capitão América.

Mother’s Milk (Leitinho)

A tradução se mistura, já que eles usam os termos “leite de mãe” e leitinho em diferentes momentos. Manter o maior uso de “leitinho” certamente tem o objetivo de manter a graça de se falar isso em uma fala séria.

Black Noir

É interessante que o personagem feito para satirizar o Batman também não ganhe uma tradução de seu nome. O termo une duas palavras que possuem o mesmo significado em diferentes idiomas, mas seria muito difícil encontrar um equivalente que reforçasse a ideia em português.

Starlight (Luz-Estrela)

Estelar ou Luz-Estrela? A tradução dos quadrinhos utilizou o primeiro, enquanto a da série utilizou o segundo. Parece-me que Estelar funcionaria melhor, já que mantém o sentido de remeter a estrelas, o que por si só já convém a ideia de luz, e ainda garante uma pronúncia parecida, com a mesma composição sonora das letras S e L.

Rodrigo Santoro fala diversas línguas no filme “O Tradutor”

O que tudo isso quer dizer?

Apenas para concluir: não existe tradução perfeita e nem tradução ideal. Em alguns casos, existem traduções melhores ou piores, sendo quase sempre uma questão de debate. O que soa estranho a um português pode ser divertido para o brasileiro, e o que incomoda no Brasil pode chamar atenção e levar mais gente ao cinema em Portugal.

Quando o assunto é relacionado a linguagens, o mais importante é que as pessoas compreendam que escolhas e usos se dão em diferentes culturas e contextos, e não devem servir de base para o desrespeito. Afinal, não existe língua melhor ou pior, variação mais importante ou menos importante, sotaque ridículo ou bonito. As coisas apenas são.

Seu país de origem não diz nada sobre o seu caráter. O seu preconceito, sim.

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