Como deve ser contada a história de um astro do rock? - Cinem(ação): filmes, podcasts, críticas e tudo sobre cinema
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Como deve ser contada a história de um astro do rock?

Duas lendas do rock. Ambos britânicos. Reginald Kenneth Dwight e Farrokh Bulsara trilharam caminhos inimagináveis em suas vidas e pelo cenário da música até se tornarem celebridades sublimes reconhecidas até os dias de hoje devido ao exímio talento que sempre apresentaram nos palcos, fazendo com que fossem reconhecidos por todo o mundo, atravessando gerações  e marcando épocas.

As ascensões destes artistas sempre estiveram conectadas as suas personalidades excêntricas, que fizeram parte de um processo de aceitação tanto interior como exterior até serem reconhecidos como desejavam, assim sendo, pelos nomes artísticos Elton John e Freddie Mercury, que representam muito para o nosso mundo.

Este retrato pode ser observado nas duas últimas cinebiografias de maior sucesso lançadas nos cinemas, Bohemian Rhapsody narra a história de Freddie Mercury até alcançar o prestígio com a banda na qual era vocalista, o Queen. O filme lançado no último trimestre do ano passado conquistou uma atenção imensurável pelos fãs do cantor e da banda, além de despertar a curiosidade daqueles que sempre ouviam seus hits e como alcançaram o sucesso.

Com a baixa aprovação dos críticos, o envolvimento do diretor Bryan Singer em casos que foi acusado de estupro e pedofilia, que ocasionaram em sua demissão pelo estúdio 20th Century Fox em dezembro de 2017, nunca se imaginaria que o filme ainda teria o privilégio de ser agraciado com quatro estatuetas na última edição do Oscar, sendo vencedor nas categorias de Melhor Montagem, Melhor Edição de Som, Melhor Mixagem de Som e o prêmio de Melhor Ator, garantindo quatro prêmios entre as cinco indicações conquistadas.

Na recepção do público, já se era esperado que a produção seria um sucesso de bilheteria, alcançando um total de 903 milhões de dólares em todo o tempo que foi exibido nas salas de cinema do mundo todo

Já a biografia de Elton John, que leva também leva o nome de um seus maiores sucessos, Rocketman, traça a trajetória do artista em sua carreira solo e sua vida pessoal. No entanto, a recepção do público com o filme parece não ter sido tão calorosa quanto se esperava, visto o sucesso de Bohemian Rhapsody. Até o momento, a produção alcançou a marca de 77 milhões de dólares. O longa, que narra a história de Elton de maneira fantasiosa, teve sua estreia na 72ª edição do Festival de Cannes, em uma exibição fora da competição oficial do grande evento. Na época, conseguiu boa parte da aprovação dos críticos e da imprensa.

E apesar do tratamento da história de Elton John ter sido feito de maneira fantasiosa em seu roteiro, Rocketman ainda se sobressai conseguindo ser mais fiel em sua abordagem do que a representação da trajetória de Freddie Mercury e dos demais integrantes do Queen (Brian May, John Deacon e Roger Taylor), garantindo particularidades não adquiridas pela produção de Bryan Singer, a qual frequentemente durante sua projeção acarreta em diversos deslizes, comprometendo sua fidelidade com seu público e os próprios integrantes do grupo musical.

As duas produções apresentam similaridades e não apenas por se tratarem de histórias de artistas musicais em ascensão, as estruturas narrativas empregadas por cada uma das produções podem se configurar como episódicas e este é um artificio frequentemente atribuído ao cinema de biografias. Portanto, os acontecimentos de Rocketman são apresentados mais fluidamente quando comparados aos de Bohemian Rhapsody, isso devido a um eficiente artificio utilizado pelo diretor Dexter Fletcher (que coincidentemente ficou reponsável por finalizar Bohemian Rhapsody após a demissão de Bryan Singer) baseado no roteiro de Lee Hall.

A primeira cena do filme nos introduz a Elton John comparecendo a um grupo de apoio para alcoólicos anônimos, contando sua história de vida para aqueles que estão em sua volta. Ao passo que o protagonista, interpretado por Taron Egerton, narra sua trajetória, o filme nos transfere para as épocas em que os acontecimentos tomaram proporção e com o andamento da narrativa voltamos ao presente, em que Elton está no grupo de apoio. Este recurso é utilizado para estabelecer um elo entre as memórias do personagem e todos os eventos da obra, revelando diversos detalhes importantes que contribuem positivamente para a experiência do espectador.

A obra de Singer pouco se esforça para criar algum mecanismo que conecte os eventos do filme, o que revela outro grande problema do roteiro de Anthony McCarten (com colaboração de Peter Morgan), que se atentam apenas aos principais episódios da trajetória de Freddie e a banda, se tornando uma obra redundante e que oferece um raso desenvolvimento ao público. Levando isso em consideração, podemos considerar Bohemian Rhapsody uma produção mais segura mas que apresenta medo ao enfrentar seus próprios dilemas, sejam estes morais ou narrativos.

Como exemplo disso, basta notar como cada obra trata a sexualidade de seus personagens. Enquanto Rocketman abraça a homossexualidade de Elton do começo ao fim, Bohemian Rhapsody transmite um conservadorismo ao exibir que o mundo de Freddie desmorona em sua frente ao ter uma relação com outro homem, e como se estabiliza ao lado de Mary Austin (Lucy Boynton). Algo que também pode ser observado mais claramente no tratamento que cada diretor dá ao empresário John Reid, presente nas duas histórias (interpretado por Richard Madden em Rocketman e por Aidan Gillen em Bohemian Rhapsody). E por isso, esta primeira se entrega como uma obra mais ousada e respeitosa em relação a natureza de seu protagonista.

Essa ousadia é refletida em vários aspectos da obra, porém, predomina em um que pode ser considerado como a escolha mais arriscada de toda a produção, substituir a voz de Elton John pela de Taron Egerton, que se mostra brilhante desde o primeiro número musical do filme com a canção “The Bitch Is Back” exibindo seus principais trejeitos. A inserção dos devaneios de Elton no meio das performances e a interpretação de Egerton formam uma combinação eficaz ao entregar ao espectador os sentimentos mais profundos do astro britânico. Algo que enfraquece a performance de Rami Malek, e mesmo que este consiga capturar alguns trejeitos de Freddie Mercury nos palcos, sua dublagem no uso do playback e seus dentes falsos que compuseram sua caracterização limitam as qualidades do ator.

Isso não significa que Rocketman é uma obra impecável, que não comete deslizes ou que sua fórmula deve ser abraçada por toda cinebiografia sobre uma celebridade do mundo da música, porém sua inventividade no decorrer da história e sua reverência à Elton John dignifica a homenagem prestada pela direção, o roteiro e performance de Taron Egerton, que dão uma aula de como contar uma boa história de um grande ícone. No entanto, é uma grande pena os realizadores de Bohemian Rhapsody não terem se arriscado o suficiente ou encontrarem a melhor forma de fazer jus à todo o legado de Freddie Mercury e do Queen.

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