Crítica: Nós (Us) – 2019 - Cinem(ação): filmes, podcasts, críticas e tudo sobre cinema
Nós (Us) - filme de Jordan Peele - cena assustadora da família de mãos dadas
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Crítica: Nós (Us) – 2019

Nós reforça o quanto Jordan Peele é competente como diretor e vem desenhando um novo capítulo no cinema do gênero de horror.

*Esta crítica pode conter spoilers

Ficha técnica

Direção e roteiro: Jordan Peele
Elenco: Lupita Nyong’o, Elisabeth Moss, Winston Duke, Shahadi Wright Joseph, Evan Alex, Yahya Abdul-Mateen II.
Nacionalidade e Lançamento: EUA, 2019 (21 de março de 2019 no Brasil) 
Sinopse: Adelaide (Lupita Nyong’o) e Gabe (Winston Duke) levam seus filhos para passar um fim de semana na casa de praia e descansar. Mas a chegada de um grupo misterioso muda tudo e a família se torna refém de seus próprios duplos.

“Nós somos americanos”, diz uma das personagens vividas por Lupita Nyong’o em “Nós”, novo filme de Jordan Peele (Corra!). A frase é provavelmente uma das mais importantes para estabelecer a metáfora que o filme representa, com uma crítica à sociedade estadunidense.

Ainda no primeiro ato do filme, Gabe reclama do carro do amigo, reproduzindo uma inveja material tão comum na sociedade atual, da qual os americanos são representantes hiperbólicos. Mas “Nós” não é apenas uma crítica à sociedade capitalista. O filme vai além. Suas metáforas e alegorias não se preocupam em se mostrar objetivas, mas ampliar o espectro de possibilidades de interpretação. O primeiro deles é justamente o trocadilho que o título em português não consegue traduzir: “Us” significa “nós”, mas também é a sigla para United States.

Nós (Us) - filme de Jordan Peele - cena família com medo

De um ponto de vista brasileiro, podemos fazer um paralelo com a concepção do “homem cordial”: seriam estes seres “iguais a nós” apenas nossas versões mais animalescas e, portanto, sem os disfarces exigidos pela sociedade? Talvez sejam o oposto: a representação do que podemos nos tornar caso deixemos que o apreço pelo material tome nossas almas. Não à toa, as “sombras” não têm almas.

De forma orgânica e natural, cada um dos personagens da família enfrenta seu próprio “eu” do lado oposto. Quase como um embate entre Dionísio e Penteu na tragédia grega As Bacantes, em que é mostrada a dualidade entre o consciente e o inconsciente. É neste mito grego milenar e no processo de interpretação dele que ocorre o seguinte entendimento: só é possível aceitar o outro a partir do momento em que uma pessoa aceita ser quem é e compreende profundamente suas diferenças em relação ao que não lhe é igual.

No caso do filme, matar “a si mesmo” é não aceitar o inconsciente e, portanto, não permitir que continuemos com nossas sombras, nossas dualidades e nosso autoconhecimento. Só assim para prosseguirmos em nossa jornada rumo ao conforto de antes, com máscaras que nos escondem, carros luxuosos que nos satisfazem e telefones celulares que nos distraem. Mesmo assim, permanecerá algo em nossas vidas sempre nos lembrando que esse inconsciente existe.

Escolhas do diretor

Se Jordan Peele utilizou o horror e o suspense para fazer críticas sociais mais verborrágicas em “Corra!”, em “Nós” ele se permite apenas produzir um horror que pode ser visto livre de análises profundas. A inteligência está em deixar a crítica social e as infinitas possibilidades de interpretação para quem assim desejar, permitindo que o espectador apenas acompanhe a história superficial se assim preferir.

A construção de tensão com o uso da trilha sonora é tão eficiente, que até mesmo as cenas na praia conseguem ficar assustadoras. O roteiro não permite pontas soltas e explica até mesmo de onde surgiu a ideia da personagem para a corrente humana, em uma crítica do filme às manifestações vazias que nada fazem de concreto para unir as pessoas.

Nós (Us) - filme de Jordan Peele - meninos no armário brincando com fogo

O horror de “Nós” é eficiente o bastante para que não seja necessário se render aos sustos e nem mesmo à violência gráfica extrema, e sim à criação da expectativa do que pode acontecer diante da mise-en-scène que nos é mostrada – e o ataque dos duplos à família Tyler é um ótimo exemplo de algo chocante devido ao que acontece em si, e não a “artimanhas” que poderiam ser utilizadas. Mesmo assim, seria mais impactante se o filme pudesse deixar o espectador tão nervoso ou amedrontado quanto no filme anterior do cineasta ou em longas como “A Bruxa”.

E se as ótimas atuações são sintetizadas pela composição arrebatadora de Lupita Nyong’o, a sequência que mostra o embate das duas personagens vividas pela atriz, em uma mistura de luta com dança, tem tudo para se tornar icônica no cinema. O mesmo se pode dizer do cenário de um local que se assemelha a um sanatório e repleto de coelhos (que por si só também representam outros significados): apenas imageticamente, a cena consegue reavivar uma memória Kubrickiana. Assim, “Nós” reforça o talento de Jordan Peele e renova o cinema de horror para um caminho diferente do que havia sido tomado há alguns anos (chamado por alguns de pós-horror), mostrando que não há necessidade de que o cinema siga apenas uma tendência. É possível fazer críticas sociais e ser profundo, e continuar entretendo o público. Afinal, a Arte deve sempre permitir que cada leitor seja livre: para fazer sua análise subjetiva, e até mesmo para não fazer análise nenhuma, se assim preferir. No entanto, triste da pessoa que não vê nada além de sangue e sustos.


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  • Nota
5

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