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Crítica | Vidro

Em Vidro, M.Night Shyamalan prova-se novamente como seu próprio pior inimigo

Ficha técnica:

Direção: M. Night Shyamalan
Roteiro: M. Night Shyamalan
Elenco: Bruce Willis, Samuel L. Jackson, James McAvoy, Anya Taylor-Joy, Spencer Treat Clark, Charlayne Woodard e Sarah Paulson

Nacionalidade e lançamento: EUA, 2019 (17 de janeiro de 2019 no Brasil)

Sinopse: Depois da conclusão de “Fragmentado”, “Vidro” mostra Dunn em uma série de encontros cada vez mais intensos com a figura super-humana conhecida como a Fera, uma das personalidades de Crumb. Enquanto isso, a presença sombria de Price surge como um orquestrador que guarda segredos críticos para os dois homens.

Vidro pôster

Na virada do século, M. Night Shyamalan lançou o incompreendido Corpo Fechado, um estudo sobre o mito do super-herói representado através de um homem que descobre ter poderes sobrenaturais. A expectativa decorrente de Sexto Sentido, sucesso arrasa-quarteirões que antecedeu a produção estrelada por Bruce Willis e Samuel L. Jackson, resultou numa reação morna de público e crítica, justamente por expectativas mal posicionadas em relação à o que tal obra deveria representar tonalmente. O diretor Quentin Tarantino – fã confesso do filme – definiu a produção perfeitamente: “o que aconteceria se o Superman não soubesse que é o Superman?”. Corpo Fechado era, então, um intricado drama que, além de ser um excelente estudo de personagem, precedia também o boom dos filmes de super-herói. Como Watchmen, adaptação dos celebrados quadrinhos de Alan Moore dirigida por Zack Snyder, ele sofria o fardo de ter sido idealizado cedo demais. Caso tivesse sido gerado numa época pós Os Vingadores, o trabalho de Shyamalan certamente seria celebrado como um dos melhores do gênero. Ao invés disso, foi renegado a um status de filme cult, uma pérola no meio da filmografia inconsistente de seu diretor

16 anos de sucessos e fracassos depois, Shyamalan concebeu Fragmentado, dessa vez um suspense sobrenatural estrelado por James Mcavoy que, para a surpresa coletiva, revelava-se, em seus minutos finais, como um filme ambientado no universo de Corpo Fechado. Tal revelação se apresentava como uma reviravolta – o twist pelo qual seu diretor ficou tão famoso quanto refém -, mas a real virada vinha mesmo em sua mescla de gêneros, unindo um universo essencialmente super-heróico a um suspense de sequestro, testando ainda mais as barreiras e possibilidades de um gênero que parece, até hoje, à beira da estagnação.

Neste ano, enfim, chega às telas Vidro, a conclusão de uma trilogia inusitada. Os acordes musicais que evocam o tique de um relógio em seus créditos iniciais e permeiam a narrativa inteira instauram a expectativa de um confronto instigado ao fim de Fragmentado: o de David Dunn (mais uma vez vivido por Bruce Willis) e Kevin Crumb (também reprisado por James Mcavoy), com seus devidos nomes aliterados tipicamente “quadrinescos”, em seu derradeiro momento de bem contra o mal; de Peter Parker contra Norman Osbourne.

Vidro

Depois da preparação de terreno feita nos dois filmes anteriores, repletos de debates e desconstruções de mitologia dos heróis e vilões, o que resta para Shyamalan e o que o mesmo quer dizer sobre o gênero dos colantes e capas esvoaçantes? Na maior parte de suas 2h e 9 minutos, a resposta parece ser realmente a entrega aos arquétipos, a abnegação do aparente cinismo perante a tais mitos que soa progressiva; catártica, até. No entanto, fazendo jus a sua filmografia, Shyamalan é mais uma vez vítima de suas inconsistências. Se Corpo Fechado e Fragmentado – ambos com títulos que se referem a seus protagonistas e seus superpoderes/maldições – eram, respectivamente, um sensível estudo de personagem e um suspense com toques e terror, fica difícil caracterizar Vidro, que passeia por muitos temas, sem de fato obter êxito na maioria deles. Pior: seu título, que seguindo a linha dos filmes anteriores deveria atribuir protagonismo ao Elijah Price de Samuel L. Jackson – o vilão Sr. Vidro -, não se justifica, renegando o mesmo a um papel secundário.

Os problemas estão na própria estrutura. Em Vidro, Dunn, Crumb e Price encontram-se presos em uma instituição psiquiátrica, numa ala específica: a de indivíduos que acreditam ser super-heróis. Sarah Paulson vive a doutora Ellie Staple, determinada a convencê-los de que o trio não possui nenhum tipo de dom. As perguntas surgem nas primeiras cenas de sessões grupais, onde questionamos a honestidade de Shyamalan perante seu público. Já presenciamos os feitos fantásticos de seus personagens nos filmes anteriores e não há indícios em suas narrativas que sugerem alucinações. Há um claro alinhamento temático que se estende para fora das telas (e não só nos momentos humorados como aquele onde a doutora comenta sobre a Comic Con), onde os temas de ambos os filmes – “nós somos o que acreditamos ser” – são colocados à prova. Shyamalan quer que questionemos, como aqueles personagens, a natureza de seus poderes. Mas sabemos, como espectadores com informações privilegiadas, que os mesmos são reais. A real batalha (não menos interessante) então é interna, a luta pelo espírito. É preciso acreditar. Se essa descrição soa intrigante, é apenas decepcionante quando colocada em prática, já que, após dois atos promissores, onde o universo é estabelecido e as peças são colocadas no tabuleiro, a utilização das mesmas peca. Repetição de temas se empilham de forma verborrágica. A direção de arte e figurino, que interessa pelas cores primárias atribuídas aos personagens de acordo com seu arquétipo do mundo das histórias em quadrinhos (roxo para o Sr. Vidro, verde para O Vigilante e amarelo para A Horda) é prejudicada pelas exposições de roteiro, e as propostas temáticas de vidro se embaçam ao ponto em que questionamos se Shyamalan tem de fato algo a dizer sobre o gênero, se lê – e entende – os quadrinhos ou se simplesmente assiste aos inúmeros filmes de herói que se empilham anualmente uns nos outros, já que as convenções mencionadas – e eventualmente consumadas – aqui são tratadas como revelações sensacionais, o que não é verdade.

Vidro

Até mesmo o apego emocional às figuras construídas até aqui acaba prejudicando Vidro, que nesse sentido representa uma regressão. Se é prazeroso rever o David Dunn de Bruce Willis em ação, consumando o caminho de herói que escolheu para si e interagindo com A Horda de James Mcavoy, não tarda para que eles se tornem reféns de um papel ingrato designado aos dois: o antagonismo vazio pré-determinado não pelo Sr. Vidro de Jackson e suas maquinações vilanescas, mas sim pelo próprio Shyamalan. Indo mais longe, escolhas como essa contradizem até mesmo a resolução incrivelmente poética do vilão em Corpo Fechado, onde Shyamalan utilizava este antagonismo superficial das HQ’s para resolver de forma tão simples quanto trágica a jornada de Price (“agora que sabemos quem você é, eu sei quem eu sou”), ao mesmo tempo em que evidenciava a noção distorcida de mundo do sujeito, tornando-o mais complexo. À Horda de James Mcavoy, reservam-se os destaques, já que o que é visto aqui se aproxima mais fortemente de um desenvolvimento lógico de sua jornada desde Fragmentado, onde a relação de Kevin Crumb com a Casey de Anya Taylor Joy é progredida, mas não aprofundada.

Ao seu fim, os temas de fé e espiritualidade presentes em maior parte da filmografia de seu diretor não soam merecidos. Shyamalan tenta, aos 45 minutos do segundo tempo, trazer um desfecho otimista sobre a real batalha, a dos inconciliáveis mundo real e dos quadrinhos. Porém nunca sente-se esse peso. Os inegáveis momentos sentimentais que fazem ligações diretas ao primeiro Corpo Fechado (completo com cenas deletadas do primeiro filme) podem até emocionar, mas presenciar um desfecho tão cínico para seus personagens, verdadeiros mártires, parece contradizer qualquer final idílico que seu diretor queira tirar do bolso.

Assim, a impressão que fica é de que o Sr. Vidro, O Vigilante e A Horda eram apenas lunáticos, meras peças de um tabuleiro maior que nunca será resolvido, já que o caminho da franquia não combinaria exatamente com o estilo visto aqui. O vilão de Samuel L. Jackson, remetendo novamente ao primeiro  filme, menciona em determinado momento de Vidro que essa “não é uma edição limitada. É uma história de origem.”. Tais figuras mereciam, pela jornada construída, desfechos menos amargos. Porque, apesar de habitarem um universo acinzentado, Corpo Fechado ainda possuia o maravilhamento de um pai e seu filho – Spencer Treat Clark, que reprisa em Vidro o papel de Joseph Dunn – descobrindo que o mesmo era algo mais.

Com Vidro, Shyamalan tenta surpreender seu público mais uma vez pelo caminho do inusitado, escolhendo o íntimo ao invés do grandiloquente, mas também o cinismo ao invés da honestidade, e não existem epílogos e “na próxima edição…” artificialmente otimistas que tirem o gosto amargo deixado ao fim. Assim, os motifs musicais do tique de relógio que constroem expectativa ouvidos aqui nunca soaram tão irônicos, já que este capítulo final, com seus dois promissores atos que desmoronam num morno fim servem como representes da própria trilogia.

  • Nota Geral
2.5

Summary

Apesar de suas ideias interessantes, atuações competentes e dois atos promissores, M. Night Shyamalan decepciona na conclusão, que diminui o peso de tudo que a precedeu.

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