Eu Cinéfilo #41: Um Achado no Paraíso Perdido
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Eu Cinéfilo #41: Um Achado no Paraíso Perdido

“Um Achado no Paraíso Perdido”

Texto especial para o Cinem(ação)

 

“… Se eu soubesse que eu iria lhe perder

Não teria acostumado minhas coisas com você…”

 

 

 

A ribalta mística da vida volta e meia nos coloca defronte a momentos de perda. Sua conversão em dano é subordinada a maneira como cada um encara esse átomo de vulnerabilidade, que sempre traz consigo uma dose hiperbólica de melancolia, dor e sofrimento.

 

O paraíso cultivado na cegueira de uma imaginação maniqueista se esvai no traço frouxo de um ideal normativo que deteriora e afasta nosso personagem mais real de um encontro com sua verdade mais pulsante. Descrente de qualquer referência ao idílio bíblico de Adão e Eva ou a alguma obra parnasiana, a busca particular por um espaço carnal que aconchegue nossa astúcia e fraqueza transcorre um solo íngreme e imperfeito.

 

 

Em “Paraíso Perdido”, mais recente trabalho da cineasta Monique Gardenberg, a verve musical, intitulada de brega pelo ranço pejorativo e reducionista, é o fio condutor da narrativa. Assim como aconteceu em “Vou rifar meu coração” (2012), documentário da cineasta Ana Rieper – tema de um dos primeiros textos que escrevi aqui no site (https://cinemacao.com/2014/02/22/vou-rifar-meu-coracao-uma-ode-ao-amor/) – o sofrimento ganha o primeiro plano da projeção e afirma toda sua força cênica e imagética.

 

A universalidade cortante de cada melodia de Waldick Soriano, Reginaldo Rossi, Odair José e companhia, ganha a partitura passional de personagens humanizados. O roteiro cria um diálogo íntimo com a história de cada canção e permite aos personagens cultivarem um carisma efusivo que remonta vivências e os sentimentos que elas afloram.

 

No holofote de cada catarse os personagens revelam suas tonalidades. No extremo dilacerante de um desejo emudecido ou no grito desengatilhado de uma ânsia anárquica, as ações se emaranham num campo minado e traiçoeiro. Patrimônio da família, o clube noturno título do filme, funciona como um personagem que observa de forma panorâmica o desenrolar de cada conflito.

 

A saga noturna do clã chefiado com zelo e certa ternura por José (interpretado por um Erasmo Carlos irreconhecível e seguro em cena) é contada por uma lente que aumenta as emoções, mas não distorce, nem rotula os sujeitos. As situações fazem com que criemos um laço empático e afetivo por cada um deles despido de qualquer julgamento e sem juízo de valor entre certo e errado.

 

A carpintaria híbrida dos personagens e a escalação de um elenco talentoso em total simbiose com a obra é um dos méritos do filme.

 

 

  • Artista conhecido da nova safra da música brasileira, Jaloo estreia na cena cinematográfica com personalidade. O cantor e compositor mostra que tem estrela e, sobretudo, talento pra trilhar uma carreira duradoura como ator;

 

  • Júlio Andrade transmite um domínio ímpar do trauma do seu Ângelo e nos presenteia com mais um pleonasmo da sua enorme habilidade camaleônica, seja no cinema, no teatro ou na TV;

 

  • Lee Taylor consegue encontrar um equilíbrio entre a sisudez investigativa e a doçura do seu Odair, e aumenta a fila de uma nova geração de atores que prioriza a entrega e o aperfeiçoamento a cada novo trabalho. Além, de estancar a sangria da repetição dos ~galãs~ populares;

 

  • Malu Galli personifica o trauma físico e psicológico da sua Nádia através de uma composição naturalista de gestos e expressões. As cenas em que ela conversa com Odair em LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais) são de uma beleza simbólica que derrete o coração.

 

  • Hermila Guedes vive os dois momentos da sua contraditória Eva com a serenidade de quem sabe o que está fazendo;

 

  • Marjorie Estiano, mesmo com um espaço reduzido na narrativa, ela despedaça a imagem das suas mocinhas clássicas numa caracterização benfeita e um ótimo trabalho de entonação vocal e postura corporal.

 

  • Seu Jorge na pele de Teylor, mostra sua versatilidade artística e protagoniza diversas tiradas cômicas com ironia, um “time” certeiro pra nos fazer rir, mas deixa a sensação que poderia ser mais bem aproveitado no roteiro.

 

  • Julia Konrad – enfim, teve a oportunidade de mostrar que é uma atriz com repertório. Sua Celeste canta e encanta com uma atuação segura e emocionante.

 

 

 

O trabalho da equipe de montagem também se destaca por estruturar o fluxo narrativo de forma sincronizada. A alternância dos shows musicais na casa noturna num paralelismo de cenas, enfatiza a atmosfera comportamental e musical da época.

 

A sensibilidade da diretora expõe o lado violento e desumano de uma sociedade domesticada pela homofobia, pela intolerância e mostra que a desconstrução de tabus e dos muros conservadores da hipocrisia se inicia no diálogo e no amor do seio familiar. A cena da primeira transa de Ímã (Jaloo) com Pedro (Humberto Carrão), compassada na cólera platônica dos punhais de “Amor Marginal” – música de Johnny Hooker interpretada intensamente pelo próprio Jaloo – é de um esplendor estético inebriante e acalentador.

O entrosamento desconcertante dos atores exprime verdade nas ranhuras que obstruem o jogo de paixão e desejo. Carrão tateia o personagem com minúcia na via silenciosa de um cárcere de preconceito e machismo que o atormenta.

 

O filme engrossa a seleta lista das melhores produções já feitas nos últimos anos e, de quebra, esfrega na cara dos “críticos” pessimistas e avessos à produção audiovisual brasileira que existe um cinema de qualidade, sim! Ainda que haja um déficit nas demais esferas da indústria (fomento e distribuição, por exemplo) temos produzido progressivamente películas com narrativas ousadas e um apuro estético relegado ao abandono após ser tragado por uma emulação criativa de cinematografias estrangeiras, sobretudo, a americana.

 

É imprescindível notarmos que artisticamente, alcançamos voos maiores quando as representações carregam no estado bruto da criação traços legítimos e verossímeis do nosso povo. Cinema é representação e representar é conectar discursos, valorizar aquilo que é nosso e recontar histórias com a carga dramática que ela necessita, sem falso decoro.

 

“Paraíso Perdido” é um oásis de sentimentos rasgados em meio à ilha na qual nos perdemos a cada desencontro.

 

Texto escrito por: Felipe Ferreira

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