Análise Black Mirror S04x03: Crocodile - Cinem(ação)
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Black Mirror S04xE03: Crocodile

Talvez a expressão “isso é muito Black Mirror” não se enquadre muito neste episódio, mas é justamente esse detalhe que faz toda a diferença.

 

Ficha técnica do episódio Crocodile

Diretor: John Hillcoat

Roteirista: Charlie Brooker

Elenco: Andrea RiseboroughKiran Sonia SawarAndrew Gower, entre outros.

Sinopse: Em um mundo onde memórias alheias podem ser acessadas, uma arquiteta luta para guardar um terrível segredo e uma investigadora de seguros apura um acidente.

 

Assistir à um episódio de Black Mirror é esperar por um “desgraçamento mental”, isso é fato. “Crocodile”, ou Crocodilo em português, traz a história de Mia Nolan, uma jovem que ao sair de uma noitada regada a drogas com seu namorado, cometem um acidente terrível. E basicamente é um episódio que fala sobre autopreservação e o que fazemos para preservar nosso status, seja familiar, de carreira, etc. E isso é tudo o que posso dizer sem dar spoilers, infelizmente.

*A partir de agora, o texto contém spoilers! Fuja se você ainda não assistiu ao episódio!*

 

Meu deus do céu, o que falar desse episódio? Bom, vamos do começo.

Parte 1.

Depois de matarem o pobre ciclista após uma noite de muitas drogas, o casal de namorados joga o corpo já inerte no mar para tentar esconder os vestígios do acidente. Mia claramente não queria fazer isso. Eles deveriam ter chamado a polícia, argumentava. Porém, deu ouvidos ao namorado e o plano de se livrar do homem funcionou.

Parte 2.

Tanto funcionou que 15 anos depois, vemos Mia totalmente diferente. Bem sucedida, casada, com um filho, cheia de prêmios e convidada para palestrar sobre seu trabalho como arquiteta. Uma pessoa boa, que pensava na comunidade e na vida das pessoas. Ela está diferente. Cabelos curtos quase brancos de tão platinado que estava. Possui uma aparência sisuda, de aspecto forte e até um pouco masculinizada.

Ao mesmo tempo, descobrimos a investigadora de seguros Shazia. Também casada e com um filho pequeno, ela vai atrás de casos de acidentes para conferir se as pessoas que serão indenizadas realmente estavam falando a verdade. Para descobrir isso, ela possui um equipamento que consegue ler as memórias das pessoas e pode captá-las em um pequeno televisor.

O ex-namorado de Mia resolve procurá-la para avisar que vai mandar uma carta anônima à esposa do homem que eles mataram quando jovens. Mia se desespera e o mata, sufocando-o.

Parte 3.

Shazia está investigando um caso de um acidente por atropelamento quando pelo acaso do destino precisa de informações que Mia poderia ter, já que ela estava na janela do hotel e olhava para o acidente no momento em que ele ocorrera. E aí que tudo descamba. Mia dá seu testemunho, Shazia vê suas memórias e enxerga fragmentos sobre a morte do ex-namorado morto e do ciclista. Shazia fica com medo e tenta fugir. Mia descobre que o marido de Shazia sabia sobre sua existência. Mata a pobre moça e vai atrás do marido dela. Mata o marido. Descobre que tem uma criança na casa e que talvez ele pudesse ter alguma lembrança sobre ela. Mata a criança. Vai até à peça de teatro do filho e chora ao vê-lo cantando. Fim.

PODERIA SER SÓ ISSO NÉ GALERA, MAS NÃOOOOOOO. Peguem as referências aqui do episódio Crocodile 00de Black Mirror aqui:
  • Na primeira cena aparecem Mia e seu atual namorado dançando em uma balada. As cenas possuem luzes piscando, em sua maior parte, vermelhas. Depois, todo episódio se passa em cenário de uma cidade com neve. É tudo frio e branco, gélido. Uma possível analogia ao “coração de gelo” que ela possui após o acidente, que ocorre onde? Sim, na rodovia com neve.

 

  • Mia muda totalmente de fisionomia. Usa roupas de cortes retos, secos. Seu cabelo marrom e comprido se transformou em um joãozinho platinado, deixando sua pele tão branca e sem vida como nunca. Contrastando com sua masculinidade, seu marido é um homem roliço e de aparência agradável, assim como seu filho. E é ele quem cuida da criança, assume o papel de cuidar da casa e tudo mais, afinal, ela é a “arquiteta famosa”. Ou seja, ela destoa da própria família.

 

  • Ela mata seu ex-namorado, asfixiando-o com o braço. Em circunstâncias que chamaremos aqui de “clichês”, ela jamais poderia matá-lo, já que é franzina e muito menor que o homem em questão. Mas, por questões de autopreservação e cuidado com sua família, ela não poderia deixar que ele escrevesse a carta e colocasse tudo a perder.

 

  • Ao matar o ex-namorado, ela é totalmente fria e calculista. Analisa a planta baixa do hotel em que está hospedada, coloca o homem no carro e sabe exatamente onde despachar o corpo. No seu próprio projeto de arquitetura de “moradias para todos”, ela joga o cara em um bueiro de vapor. (se você acha que viu o cara mexer os olhos e as mãos e que ele NÃO TINHA MORRIDO AINDA, me chama por favor, porque tenho 87% de certeza de que ele só estava desacordado).

 

  • Ela compra um filme de pornô no hotel para servir como “álibi” caso alguém perguntasse algo sobre essa noite. Detalhe: o filme era da diretora Erika Lust, que se diz fazer filmes adultos feministas (?). Isso também em “circunstâncias clichês”, poderíamos dizer que seria um comportamento esperado de um homem, já que falamos sobre a masculinização da personagem. E duvido que isso tenha sido colocado ao acaso.

 

  • Na hora de matar Shazia, a investigadora de seguros, Mia pede para a mulher fechasse os olhos, para que ela não consiga se conectar pelas lembranças. Mia ainda lembra dos olhos abertos do primeiro homem morto e de seu ex, e não queria que isso se repetisse com a mulher.

 

  • Ela mata o marido de Shazia com um FUCKING martelo, mas não sabia que na casa havia um bebê. E QUE ELE ERA CEGO. Ou seja, não precisaria matar o bebê, ele não teria memórias visuais de nada. E se fodeu porque quem “sabia de tudo” era o porquinho da índia, que ajudou a polícia a descobrir quem havia entrado na casa e matado pai e filho. ORA VEJAM SÓ, O DIA FOI SALVO GRAÇAS AO ANIMAL DA FAMÍLIA QUE SHAZIA NÃO TINHA CURTIDO MUITO COMO PRESENTE DE ANIVERSÁRIO.

 

  • No fim, o teatro musical em que o filho de Mia aparece, é uma peça inspirada na cena final do filme de “Bugsy Malone”, de 1976, com a música “You Give a Little Love”. A música fala sobre amizade, sobre tudo o que você faz e diz será lembrado e o amor que você dá é o que você recebe. Um pouco de carma aí, né não? Detalhe: as crianças são mini gângsters.

 

  • Saca só a cena desse filme aqui:

 

Para finalizar e amarrar toda essa loucura: 

Talvez a expressão “isso é muito Black Mirror” não se enquadre muito neste episódio, mas é justamente esse detalhe que faz toda a diferença. Ele foi feito para criticar nossas mentiras, o que fazemos para nos autopreservar e como isso pode acabar com a gente. Fora que a analogia ali de mentiras/bola de neve, tá bem na nossa cara!

Toda a questão com a tecnologia aparece mais sutil do que nos outros, até porque mostra que não precisamos apenas dela para fazermos coisas terríveis – no caso de Mia, tornar-se uma serial killer. Outra questão forte , porém mais implícita, é que ela é reconhecida por ser uma arquiteta que pensa nas pessoas e na sociedade de um modo geral. Ou seja, mais um ponto para a discussão sobre: “mas ela fez tanta coisa boa… não pode ser tão ruim assim”… Coisa que ouvimos demais quando falamos sobre estupro e assédio sexual, né? Claro que não quero comparar morte com estupro, mas a comparação entre atos de uma mulher e de um homem SEMPRE SÃO COLOCADAS EM XEQUE.

Enfim, é um desgraçamento mental. Mesmo sem o chip de reconhecimento de memórias, isso tudo já acontece. Fotos, redes sociais, e tudo que fazemos através da tecnologia atual já nos cerra em evidências que servem como provas para qualquer coisa. Afinal, ficção científica é na verdade uma crítica à nossa sociedade e Black Mirror cumpre totalmente esse papel.

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