Crítica: Julieta (2016)
Julieta é positivamente melodramático, trata de perda e culpa, tudo envolto em uma dose de mistério.
Ficha técnica:
Direção e roteiro: Pedro Almodóvar
Elenco: Emma Suárez, Adriana Ugarte, Priscilla Delgado, Blanca Parés, Daniel Grao, Darío Grandinetti, Inma Cuesta, Rossy de Palma.
Nacionalidade e lançamento: Espanha, 2016 (07 de julho de 2016 no Brasil).
Sinopse: Julieta tenta seguir em frente ao cogitar mudar de país com o namorado, mas um passado nebuloso volta à tona e ela tem que purgar tudo que viveu com a filha Antía.
De modo resumido e grosseiro, posso dizer que Julieta acerta na narrativa no começo, meio e fim. O longa possui, também, méritos nos aspectos técnicos e atuações. Além, é claro, na direção. Alegorias e retrato cru. Vermelhidão e mulheres fortes. Enfim, mais do que de um Romeu, esta Julieta é claramente do Almodóvar.
Quantas vezes tentamos recomeçar na nossa vida? E quantas outras que um único evento fortuito faz tudo mudar? São com essas duas premissas que vemos a transformação de Julieta, focando muito – mas não de modo redutivo – na relação mãe e filha.
Quando a madura Julieta, na casa dos 50 anos, está prestes a mudar de país com o companheiro, ela encontra ocasionalmente uma antiga amiga da filha. Tal evento atormenta a nossa personagem título. Percebemos que há algo de nebuloso no passado dela e que a informação sobre a filha faz com que a necessidade de uma guinada seja urgente e ultrapasse a instável – e talvez falsa- calmaria que vivia.
Julieta passa quase que o longa inteiro a escrever uma carta para a filha, pretexto – questionável, é verdade – para um flashback tão intenso que quase nos esquecemos que aquela não é a narrativa atual, ainda que o vai e vem tenha até uma frequência considerável. O resgate do passado serve para desnudar para o público o que ocorrera e para evidenciar a clara transformação na protagonista (recurso bem utilizado de forma similar no recém Pais e Filhas).
As duas faces de Julieta, a impetuosa da jovem e a sóbria da madura, são lados de uma mesma moeda – ambas muito perturbadas. Diferentes, ligadas, significativas e contrastantes, mas ainda uma Julieta una. Multifacetada e linear. Carnal e materna. Culpada e inocente. Absorta e inconformada. Integram a sempre incompleta completude dessa persona. Ambas as atrizes (Adriana Ugarte e Emma Suárez) absurdamente entregues aos papéis e conseguindo nos convencer de tudo isso. E caso não tenha me feito claro, as duas estão espetaculares.
A introdução da história se pauta em alegorias e um não estabelecimento daquele universo ficcional. As quase fálicas imagens iniciais, a escolha e armazenamento dos livros e o abrupto encontro, dão o tom do que viríamos a encontrar – mas sem nunca antever ou nos preparar de modo óbvio.
O desenvolvimento se dá em meio a reviravoltas até novelescas, mas com uma jornada instigante em cenários que exalam vida. O trem, as mortes, as aulas, o mundo interiorano, a relação com os pais, companheiro e a criação da filha, todos eventos bem marcados na trama e marcantes para o público.
O final, que por motivos óbvios não irei revelar, é um tanto piegas (como de fato a vida às vezes de fato o é). Contudo, amarra a história após um evento poderoso. O corte final nos despede da narração de forma precisa e incômoda.
Não é possível contudo, furtar-se a expor os defeitos do longa. As conveniências e um apelo emocional em algumas cenas se mostraram ainda mais problemáticos dado o caráter visceral que elas possuem na narrativa. Há uma cena em uma quadra de basquete que perde a força emocional que ela tem. O mesmo é observado em um momento em um retiro, algo ali parece torto – apesar de ter uma carga importantíssima na história.
Uma outra falha é o enfraquecimento da figura masculina. Com uma Julieta e outras mulheres com presença, ter figuras de homens que também as acompanhasse na mesma potência seria importante. Podem alegar que é uma característica do diretor, mas ainda assim não deixa de ser algo notório negativamente. O retrato mor dessa questão é o arco do pai de Julieta. Além de ser mais fraco narrativamente (talvez até desnecessário), vemos um personagem não tão complexo quanto às mulheres da trama.
Contudo, na parte técnica um trabalho primoro que se concretiza a partir da confluência de vários componentes. Uma fotografia “inteligente” ao transmitir, com a paleta de cores e iluminação, uma vivacidade/depressão. O design de produção privilegiando itens vermelhos de forma destacada em cena. Um trabalho de câmera sóbrio, sem movimentações bruscas, porém em passadas precisas. A trilha, vibrante, é outro elemento que embala e amarra todos os aspectos. E figurinos que gritam no tom certo em cada item das vestimentas. O ritmo, todavia, dá uma engasgada em alguns momentos. As bem-vindas mudanças de ambientes às vezes cansam um pouco.
Vale também exaltação dos alívios cômicos em pequenos momentos bem pontuais. A veterana Rossy de Palma é responsável por alguns deles. Por vezes, só um olhar dela já traz uma necessário alívio ao peso do que estamos vendo. Mas é um humor também dúbio e pouco convencional – apesar de simples.
Julieta é um grande filme. Talvez não agrade a todos, mas a sensibilização que nos passa o crescimento daquela mulher não pode ser ignorado. A relação mãe e filha é colocada em um nível raro, em um prisma diferenciado. É uma obra que nos deixa inquietos e não saímos incólumes da sala. Nossa mente fica tão agoniada quanto a de Julieta.