Apocalipse nos Trópicos revela projeto teocrático, mas não aprofunda projeto democrático
Apocalipse nos Trópicos, agora disponível globalmente pela Netflix, não é para a extrema-direita, muito menos para os cristãos evangélicos radicalizados. Serve para a esquerda, e talvez alguns segmentos à direita que ainda são democráticos e que tem clara dificuldade em se comunicar e compreender esse segmento da sociedade. Pela incompreensão e pela falta de respostas, apostam em caricaturas a respeito dessa massa. É verdade, porém, que compreender os evangélicos não é tarefa fácil devido a sua diversidade, mas há uma tentativa da diretora, roteirista e produtora, Petra Costa, em compreender esse movimento político que se organizou e seguiu seu próprio caminho.
Diferente de Helena (2012) — em que fala carinhosamente da irmã — e Democracia em Vertigem (2019) — que trata do poder financeiro das oligarquias brasileiras na política, incluindo a própria família — , em Apocalipse nos Trópicos, Petra, a persona, se afasta da narrativa e tenta encontrar um rumo coletivo enquanto campo político para compreender um movimento relevante e decisivo na vida cotidiana brasileira. O documentário se concentra em entender o segmento evangélico brasileiro destrinchando suas origens, focando no líder mais verborrágico e delirante, o pastor Silas Malafaia, e tentando evidenciar os esboços do projeto de poder que, embora coesos em alguma instância, há dissidências relevantes.

Ao explorar as origens do neopentecostalismo brasileiro, com forte influência norte-americana e com apoio da Ditadura Militar (1964-1985), a diretora e sua co-roteirista, Alessandra Orofino, tentam montar um quebra cabeças complexo. Mesmo que a caça aos comunistas da época da Guerra Fria tenha servido de influência para o discurso conservador dos pastores estadunidenses fazendo eco no Brasil, isso por si só, não parece compor o quadro completo. A saída fácil de concentrar o acesso ao pastor Silas Malafaia e deixá-lo expor seu discurso de extrema-direita e antidemocrático, concentra poderes em uma figura que é barulhenta, mas o documentário não coloca em dúvida seu real poder de mobilização.
Não há um contraponto sólido do documentário frente ao discurso do pastor protagonista, pois como é fato, as igrejas evangélicas são altamente capilarizadas. Embora grandes lideranças tenham representação política no parlamento, inclusive com uma bancada em que a própria existência faz mal à democracia brasileira, essas lideranças até podem representar muitas pessoas, mas será que elas representam o sentimento geral de uma massa? Petra parece não ter respostas a essa pergunta e não se ocupa muito em respondê-la. Os pequenos depoimentos de pessoas comuns, embora importantes, não respondem às motivações da guerra santa que estão travando.

Parte significativa dos evangélicos que se vinculou à extrema-direita, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, talvez por não terem ou terem visões completamente opostas sobre os rumos da própria vida e do país, se resigna a lideranças barulhentas e histriônicas, porém, exatamente o quê essas pessoas pensam da democracia — que é a pergunta da documentarista — não é respondida. O fantasma do comunismo e o pânico moral (mamadeira de piroca [sic], banheiro unissex [sic], “ideologia de gênero” [sic]), podem servir de base para o medo e a coação de fiéis, que também são eleitores, mas conforme indicam algumas experiências e outros estudos, frente aos problemas reais da vida cotidiana, esses assuntos delirantes e ao acessarem o delírio do discurso, passam a ser secundários.
A religião, em linhas gerais, sempre empurrou seus fiéis ao conservadorismo. A base do dogma é justamente manter as coisas exatamente como elas estão. Movimentos dissidentes, como a Teologia da Libertação da Igreja Católica nos pós-guerra, logo foi enterrado pelo Papa João Paulo II. Visto por alguns como santo, era um anticomunista ferrenho e esteve metido em alguns escandâlos dentro da igreja, como mostraram documentos posteriores. Isso abriu espaço para a entrada dos neopentecostais estadunidenses em terras brasileiras. Em seguida, o tele-evangelismo veio com força e, curiosamente, teve seu auge a partir da estabilização da moeda com o Plano Real (1994) e cresceu vertiginosamente nos primeiros governos (2003-2010) do presidente Lula, ironicamente.
Todos esses elementos estão no filme de Petra Costa, entretanto, além de fatos episódicos da própria história, o documentário não se arrisca em entender exatamente qual é o projeto de poder, além do projeto pessoal de poder de Silas Malafaia aliado ao bolsonarismo. O tele-evangelismo, que é legítimo, sempre vendeu mentiras, alguma palavra de apoio e, assim como os templos, chegou a todos. A democracia brasileira nunca chegou a todos, diferente do projeto dos evangélicos. Como competir com algo concreto, sendo que o que se tem para vender é uma ideia ainda abstrata, mesmo que seja uma ideia importante? Essa pergunta que parece ser fundamental, embora defender a democracia seja necessário, fica sem resposta.

A tentativa de golpe de estado feita por Bolsonaro, seus amigos e os militares (novamente atrapalhando a vida da nação), só foi possível graças aos evangélicos. Me parece que a frágil democracia brasileira tão bem e necessariamente defendida por Petra, não consegue competir com o poder e com os afetos solidários e salvadores movimentados pelas igrejas. A feliz e necessária vitória de Lula em 2022, como analistas e cientistas políticos mostraram, não foi com os evangélicos. Para a maioria dos cristãos, essa ideia conservada de democracia vai contra a própria percepção de mundo dessas pessoas, e essa complexidade está longe de ser capturada por Apocalipse nos Trópicos, mesmo com a introdução da teologia do Domínio, um contraponto forte à democracia.
O Censo de 2022 mostrou que os evangélicos não cresceram como indicavam as previsões. No próprio documentário, é dito que esse grupo populacional é mais de 30% da população, porém, segundo os resultados divulgados em junho de 2025, eles são 26,9%. Mesmo tendo crescido nos últimos doze anos (2010 foi a data da última medição), o ritmo diminuiu. Por outro lado, o número de pessoas sem religião é hoje de 9,6%, um número recorde e relativamente expressivo. Um ponto que conversa com essas mudanças demográficas e que está ausente no documentário, é o quanto as próprias lideranças evangélicas congressistas estão distantes de suas bases, assim como o Estado brasileiro se fechou nos interesses de algumas poucas pessoas. O encastelamento que o poder proporciona — e Petra faz um paralelo sagaz em mostrar que Brasília tenha sido construída no interior do país para servir de encastelamento aos poderosos —, atinge a todos, inclusive àqueles que dizem, como o pastor, representar a todos.
O projeto teocrático verbalizado pelo extremista Silas Malafaia parece ameaçador num primeiro momento, mas ele carece de uma lógica mínima de inteligência. Se a democracia foi tão vilipendiada por golpistas a mando de um capitão expulso e de baixa inteligência, um pastor verborrágico e canalha e por militares saudosistas da ditadura, é sinal de que a democracia que deve ser protegida e aprofundada, precisa ser mais acessível do que uma igreja evangélica ou qualquer outra. Se a democracia chegar a todos, junto a uma dinâmica mais igualitária de distribuição de renda, acessos a serviços públicos melhores e aparato cultural, a ideia do divino como salvador tende a ser secundária, como já mostraram exemplos ao redor do mundo. Talvez por saber disso, é que Malafaia tenha se agarrado ao poder, mas a um tipo de poder sem inteligência o suficiente para coordená-lo.
Apocalipse nos Trópicos é um trabalho que comunica seus objetivos de forma relativamente clara, mas que ao se deparar propositalmente com um figura altamente manipulativa, se deixa levar por sua ideia de um assunto repleto de contradições e percepções. Os evangélicos cresceram sem que o campo progressista desse a devida importância e tentasse compreender suas motivações. Atacá-los através do uso descarado e oportunista da bíblia para arrecadar dinheiro dos fiéis, talvez seja falta de estratégia, e essa prática é de longa data e não foram os evangélicos que inventaram. Fazer como Petra Costa faz, em defender a democracia como estrutura que não carece de pressa no aprimoramento e com pouca crítica, também não parece ser o melhor caminho. Disputar a ideia, inclusive estética, poderia fazer algum sentido quando a democracia brasileira fosse capaz de entregar o que prometeu e não tem conseguido cumprir. Até lá, a disputa parece ser entre o fim do mundo apocalíptico ou entre entregas concretas que só a democracia é capaz de produzir.
