Crítica: Código Preto
Código Preto – Ficha Técnica
Direção: Steven Soderbergh
Roteiro: David Koepp
Nacionalidade e Lançamento: Estados Unidos, 2025.
Elenco: Michael Fassbender, Pierce Brosnan, Gustaf Skarsgård, Cate Blanchett, Tom Burke, Marisa Abela, Regé-Jean Page, Naomie Harris, Kae Alexander.
Sinopse: É preciso escolher: seu casamento ou sua lealdade? Em Código Preto, acompanhamos o casal de agentes espiões Kathryn (Cate Blanchett) e George (Michael Fassbender). Dentro de casa, a vida matrimonial é tranquila e apaixonada, os dois respeitando os segredos e as discrições da profissão. Quando, porém, alguém parece ter vazado informações confidenciais e perigosas da inteligência, Kathryn é a principal suspeita.
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Em menos de três meses em 2025, o diretor Steven Soderbergh lançou dois grandes pequenos filmes, Código Preto que chegou primeiro aos cinemas, e Presença (2025), que está em cartaz. Nos EUA e outros países, a ordem de lançamento foi ao contrário. Embora pareça uma simples coincidência de lançamento, o que em partes é, Soderbergh apresenta em ambos os filmes, uma capacidade interessante de contar histórias tradicionais — espionagem e fantasmas em casa assombrada — com elegância e estilo próprio. Talvez seja pela parceria dupla com o roteirista David Koepp ou porque Soderbergh tem ficado mais esperto na contação de histórias.
Código Preto acompanha o espião meticuloso e obsessivo George (Michael Fassbender), tentando descobrir entre seus colegas — inclusive sua mulher, a charmosa e dúbia Kathryn (Cate Blanchett) —, qual deles está vazando informações confidenciais da agência que trabalham e colocando a vida de milhões em risco. Ele reúne em sua casa para um jantar casual os agentes James (Regé-Jean Page) e Freddie (Tom Burke), a psicóloga exclusiva dos agentes, Dr. Zoe (Naomi Harris), a analista de dados Clarissa (Marisa Abela) e claro, sua esposa. Algo que nos códigos de filmes de espionagem seguiria uma conversa tradicional sobre trabalho para colher pistas do x-9, se transforma numa revelação pessoal de casos íntimo-sexuais entre eles, já que nenhum ali consegue se relacionar com ninguém que esteja fora da agência.
Ainda que a lógica central de Código Preto seja descobrir quem está vazando dados sigilosos, não é exatamente esse o grande ponto de discussão. Soderbergh e Koepp estão interessados em discutir as relações matrimoniais, especialmente entre George e Kathryn, que destinam ao relacionamento uma admiração e fidelidade mútua, mesmo que o trabalho sigiloso atravanque o compartilhamento de informações. O brilho estourado em algumas cenas parece ter o objetivo de confundir o espectador sobre o que pode ser capturado e a atmosfera compulsiva-obsessiva de George por limpeza, regularidade e verdade, além de criar tensão sobre o descuido — que acontece em determinado momento — faz com que o filme se acomode em poucos cenários para discutir quem está mentindo sobre o quê e com quais objetivos.
Michael Fassbender atua como um espião semelhante em O Assassino (2023), de David Fincher, com a diferença que no drama de Fincher, ele corre atrás do prejuízo em função de um erro, e em Código Preto, ele não deixa nada sair do prumo predestinado. Cate Blanchett encarna uma esposa leal e devota na mesma medida do marido, mas com dubiedades sobre seus interesses e inseguranças. Abrindo espaço para a discussão da vida pessoal de cada um dos indivíduos para além do passado dramático e indo nas consequências dos traumas como determinantes na atuação laboral, Soderbergh e Koepp criam um nó com aparência de cego, mas no fundo é um nó simples de cadarço.
Discutir fidelidade trabalhando numa agência de espionagem parece um contrassenso, pois, código preto é, na verdade, um código para esconder alguma informação secreta. Tudo, de repente, pode ser código preto, seja para trair a nação, seja para a traição matrimonial. George, na verdade, está mais interessado em descobrir se sua esposa está o traindo ao trair a nação, colocando em xeque um relacionamento que é leal ao extremo, do que descobrir se os colegas de trabalho são traidores da pátria. Perguntas como o limite da traição para alguém como George, ou quem, entre Kathryn e ele, morreria ou mataria, apesar de instigantes, não saem do lugar comum.
O roteiro de Koepp não consegue desenvolver para além da segunda linha, mesmo com personagens que, em tese, serviriam para a progressão da narrativa e aprofundamento ético dos relacionamentos humanos. É o caso da psicóloga Zoe, que guarda os segredos de todos eles, menos George. Ela se vê implicada nessa dinâmica quando não respeita o próprio sigilo profissional, dormindo com dois suspeitos de terem roubado o arquivo sigiloso. Algo que poderia incrementar o discurso ético na dinâmica de espionagem, seria a breve participação de Pierce Brosnan, que é incluída perifericamente sem ter muito o que fazer e apenas incha a narrativa como alguém do alto escalão da agência.
Soderbergh é um diretor-autor profícuo e tem no currículo vários gêneros diferentes. Os assaltantes de banco na ação Onze Homens e Um Segredo (2001); a previsão de uma pandemia e de como a ciência seria importante no drama Contágio (2011); as aventuras e dilemas afetivos de stripers masculinos na comédia dramática Magic Mike (2012); a vida do guerrilheiro e revolucionário Che Guevara na biopic Che: O Argentino (2008); e outros tantos filmes, inclusive sua aventura no terror com Presença (2025). Não dá para afirmar que Steven Soderbergh seja inexperiente, mas quando ele tem em mãos algo interessante como Código Preto, dificilmente ajuda na elevação estética do projeto. Ele tem um estilo próprio, altamente identificável e com seus maneirismos bem didáticos a essa altura da carreira, logo, o filme tem cara de Soderbergh, o que não é ruim, tampouco é bom, mesmo sendo altamente estimulante — coisa que ele domina como ninguém.
Código Preto diverte, instiga e reaproveita signos dos filmes de espionagem que já estão surrados de tanto uso, graças a uma ideia aparentemente subversiva do roteirista David Koepp para discutir relações matrimoniais. Se relações pressupõem confiança e verdade, dificilmente isso funcionaria entre espiões, a menos que ambas as partes estivessem compradas em si mesmas no objetivo comum: matar e morrer pelo outro. Koepp e Soderbergh empurram a fidelidade e lealdade entre um casal até a fronteira limite, exercitando cenários provocantes e libidinosos sobre a manutenção de um amor que sobrevive em bases menos complexas do que os relacionamentos atuais fazem parecer. O que Código Preto ensaia e executa com satisfatório prestígio, é que baboseiras pseudo-amorosas da atualidade não substituem a boa e velha lealdade e admiração, e que a ideia moralmente restritiva de fidelidade talvez esteja ficando ultrapassada.
Nota: 3 /5