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Crítica: Queer

Queer – Ficha técnica:
Direção: Luca Gadagnino
Roteiro: Justin Kuritzkes
Nacionalidade e Lançamento: Estados Unidos, Itália, 2024
Elenco: Daniel Craig, Jason Schwartman, Henrique Zaga, Daan de Wit, Colin Bates, Drew Starkey.
Sinopse: Na Cidade do México dos anos 1950, um expatriado americano de meia-idade vive solitariamente em uma pequena comunidade americana. No entanto, a chegada de um jovem estudante o desperta para finalmente estabelecer uma conexão com alguém.

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Queer, novo filme do diretor Luca Guadagnino, chegou recentemente ao streaming após breve passagem pelos cinemas. Não é empolgante como Rivais (2024), mas é extremamente carismático e delicioso. Explorando um outro lado do desejo, numa época em que a expressão da sexualidade não-normativa não tinha espaço na sociedade, Guadagnino consegue ambientar uma fábula lírica e onírica no México dos anos 1950, acompanhando um protagonista complexo, solitário e desajeitado brilhantemente interpretado por Daniel Craig, que busca no amor romântico a saída de sua carência afetiva. 

Adaptado do livro homônimo de William S. Burroughs, que tem mais intensidade que o filme, em pouco mais de 100 páginas, o escritor conta a vida de Lee, alter ego do autor, em sua passagem e morada pelo México. Queer é uma viagem por suas aventuras na cidade da América Central sob o efeito de álcool e opioides, a paixão avassaladora pelo jovem Eugene Allerton e sua viagem à América do Sul na busca pela Ayahuasca, um chá alucinógeno que supostamente estaria sendo usado pela União Soviética e pela CIA para o controle de mentes e para a telepatia, fato de maior interesse de Lee. 

Queer foi adaptado pelo roteirista Justin Kuritzkes, que também escreveu Rivais, repetindo a parceria com Guadagnino. Algo que destaca como mudança na adaptação, é o terceiro ato do filme que não existe no livro, com exceção de uma parte do epílogo, e é justamente nessa parte, que há uma queda de qualidade, mesmo com imagens inspiradas. A história segue as mesmas batidas do livro, com Lee se humilhando para ter o amor de Allerton, compondo boa parte do primeiro ato e se intensificando no segundo. A construção desse personagem que não é necessariamente gostável e tampouco detestável, causa algum incômodo, mesmo quando ele parece genuinamente feliz. Lee parece, a todo momento, um sujeito deslocado do tempo e do espaço. 

Esse incômodo faz parte de Lee, que às vezes sente desconforto por ser quem é, ou seja, um queer, uma bicha – o contexto da palavra queer/bicha utilizado no filme e no livro, reflete o tom pejorativo da palavra e seu significado comum na época, e a palavra só ganharia uma ressignificação no final dos anos 1980, inclusive como movimento político e acadêmico e viria com força a partir da virada do século. Apesar desse desconforto, Lee ainda consegue sentir-se orgulhoso por ser quem é, mesmo com oscilações pelo uso dos entorpecentes ou pela própria natureza do desejo, ora sendo visto como maldição, ora como lugar legítimo de manifestação. 

Toda essa complexidade, violência, desprezo e afeto são capturados com qualidade por Guadagnino e especialmente por Daniel Craig, que interpreta Lee. Craig entrega uma performance arrebatadora e estonteante, captando os sentidos do personagem sem parecer caricato ou forçado. Há momentos sublimes de Lee contido, inseguro e carente, tão bem interpretado por Craig, que a imagem de James Bond que ele carregará pelo resto da carreira, simplesmente desaparece. É brilhante e é uma injustiça ele não estar indicado ao Oscar de Melhor Ator, sendo talvez a melhor performance masculina da temporada de premiações

Mais importante do que a caracterização, Queer capta a essência da obra original: a vergonha, o desejo, a carência, o deslocamento, o calor do encontro e a paixão do sexo que se intensifica à medida que as personagens se sentem confortáveis na própria pele. Ajuda nessa jornada, o bom desempenho de Drew Starkey, no papel do jovem Eugene Allerton, que transita entre a frieza e a indiferença, seguidas do calor, do afeto e da aventura. O México recheado de cores violetas e um céu alaranjado, contam uma história quente e cheia de ternura, que passa pelo desajuste nas cores esverdeadas e palhas, sem perder a sobriedade desejante. Mérito do diretor de fotografia Sayombhu Mukdeeprom e da direção de arte sob as mãos de Mônica Sallustio, figurinhas carimbadas do diretor. 

Na caracterização, direção de atores e corpos desejantes, Guadagnino sabe o que está fazendo e é competente, ou seja, está se sentindo em casa. Porém, nem tudo são flores. Há facilitações simplórias e, ao trabalhar, pela primeira vez, com fortes simbolismos e tons contemplativos, Guadagnino parece perdido, sem reação. Parte desse desajuste está presente no roteiro, que consegue captar a essência do livro, mas inventa situações que nem sempre contribuem com o avanço do desejo dos personagens. Há repetições, pouca invenção do diretor em dar sentido narrativo e o filme murcha em certo momento para, logo depois, buscar o encerramento num tom agridoce.

Um bom exemplo é a ida para o Equador atrás da Ayahuasca. A viagem psicodélica rende imagens fascinantes e representa o encontro de almas e corporificação um do outro, tamanho o desejo exalado. Porém, tal qual o segundo ato que se estende, nessa invenção da viagem psicodélica, se perde a chance de explorar os signos e símbolos do amor de forma mais criativa. O delírio do amor febril que castiga e afaga, se transforma em algo sintético, ameno. O clímax criado pelo roteirista, que antecede o epílogo agridoce, é justamente para dar um tom mais intenso e menos frontal do livro, mas acaba sendo esteticamente pobre.

Os livros de William S. Burroughs, são recheados de viagens psicodélicas e delírios por álcool e outras drogas, além da solidão misturada com culpa e desejos reprimidos. O diretor David Cronenberg, a seu modo, captou o sentido um tanto parecido com Guadagnino, mas com um pouco mais de esperteza, na adaptação Naked Lunch (1991). Além de Queer e Naked Lunch, livros que ganharam adaptação cinematográfica, Junkie – que ainda não foi adaptado – é o primeiro da trilogia autoficcional do autor. Lee experimenta sensações muito parecidas na trilogia literária e nos dois filmes agora adaptados, e William S. Burroughs transcreve esses sentidos de maneira despojada, num ritmo oralizado e compulsivo, repleto de simbolismos e metáforas, algo clássico da geração beat, movimento do qual o autor é um expoente.

Luca Guadagnino e Justin Kuritzkes até conseguem transcrever esse excesso compulsivo, mas pouco exploram o lugar simbólico da obsessão e do desejo através das falas aparentemente aleatórias de Lee. Graças a Daniel Craig, Lee ganha contornos complexos e ambivalentes sobre seu lugar no mundo. Com digressões e frágil presença de uma estética simbólica, Guadagnino e Kuritzkes são cuidadosos com o projeto e, para incrementar o apetite, repetem a parceria com Trent Reznor e Atticus Ross numa trilha sonora menos excitante que Rivais, mas tão chamativa quanto, com espaços para Nirvana, New Order e Sinéad O’Connor. Queer facilmente melhora numa segunda assistida, especialmente após a leitura do texto base, mas, independente do complemento, é um filme que se sustenta com as próprias pernas e com cenas excitantes, seja pelo terror da rejeição ou pelo desejo de ser amado inconsequentemente. De brinde, no finalzinho, toca Caetano Veloso enquanto sobem os créditos.

Nota: 3,5 / 5

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