Kathryn Bigelow: A diretora em um ambiente de diretores
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Analisando Kathryn Bigelow: A diretora em um ambiente de diretores

Analisando a filmografia é uma série de textos que busca desvendar filmes que apresentam a mesma temática desenvolvida ao longo da trajetória cinematográfica de uma diretora ou diretor. Nessa série de cinco textos serão analisados os filmesEstranhos Prazeres (1995), Guerra ao Terror (2009), A Hora Mais Escura (2012) e Detroit em Rebelião (2017). Este último, é um texto final que busca um olhar condensado, analisando pontos em comum das obras realizadas por Kathryn Bigelow.

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Em 2025 acontecerá a 97ª edição do Academy Awards, prêmio concedido pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, ou o mais conhecido, Oscars. Em quase cem anos de história, apenas em 2010, na 82ª edição, uma mulher levou para a casa o prêmio de Melhor Direção. Depois de 80 anos de premiação, a Academia se sentiu à vontade para premiar uma mulher com o maior prêmio da carreira cinematográfica estadunidense. Ainda se passariam 10 amargos anos para que apenas em 2021 a segunda mulher levasse novamente o prêmio. Parecendo uma intervenção divina, no ano seguinte, o prêmio de Melhor Direção foi para uma mulher. Estamos falando de Kathryn Bigelow, Chloé Zhao e Jane Campion, respectivamente, e tudo indica que na cerimônia de 2025, não teremos outra mulher ganhando esse prêmio, já que as apostas estão direcionadas para outros nomes.

Não é uma trajetória qualquer. Ser a primeira mulher a ganhar o Oscar de Melhor Direção numa das maiores premiações do cinema, foi, e continua sendo, um feito histórico. Histórico pela nossa personagem, Kathryn Bigelow, vergonhoso para a Academia, que já na época, sofria duras críticas pelo seu corpo votante muito masculino, branco e de idade avançada. Muitas pessoas à época, diziam que ela só foi prestigiada por Guerra ao Terror ser um filme de guerra, o que obviamente não se provou verdade, mesmo sendo um dos gêneros favoritos da Academia – até hoje, o Oscar já foi entregue para 17 filmes de guerra, ou aproximadamente 17% de todas as edições, sem contar a categoria de Filme Internacional. 

Nascida na cidade de San Carlos, Califórnia, no dia 27 de novembro de 1951, Kathryn Ann Bigelow, 73, é uma das cineastas mais interessantes do cenário estadunidense após a ascensão da Nova Hollywood. Ao longo da carreira de quase 50 anos, são apenas 10 filmes dirigidos, três curtas-metragens e alguns episódios de série de TV nos anos 1990. Apenas dois projetos com o crédito de roteirista, curiosamente seus dois primeiros longas, The Loveless (1982) e Quando Chega a Escuridão (1987). Filmes menores, tanto no escopo quanto na duração, em que a capacidade da diretora em trabalhar a violência, a ação, a masculinidade e o alto preço a se pagar pelas escolhas estão presentes e que serão temas recorrentes em sua carreira. 

Seu primeiro longa-metragem, The Loveless, dirigido e roteirizado com Monty Montgomery, é uma obra de excelente percepção sobre a masculinidade, além de diálogos afiados e uma violência solitária pulsante. É também a primeira aparição de Willem Dafoe como protagonista. Seu segundo longa, Quando Chega a Escuridão, escrito com o também diretor e roteirista Eric Red, é um western de vampiros, no meio-oeste americano, com a forte presença de uma juventude marginalizada, persuasiva e violenta. Adrian Pasdar é um jovem que foi seduzido por uma vampira, é mordido e terá de aprender a caçar e conviver com a gangue. Bill Paxton no auge do charme, faz um vampiro completamente psicótico e violento. 

Já nesses dois trabalhos, mais especificamente em Quando Chega a Escuridão, é notável o esforço da cineasta em construir uma atmosfera opressora, com pouco espaço para respiros. Sua capacidade em trabalhar as cenas de ação e seu olhar firme e imponente na câmera, garantem uma segurança importante para a sustentação da trama. O senso de ritmo também chama a atenção, pois a diretora nunca perde a mão. O controle da adrenalina é sempre no alto nível, intensa, rasgante, mesmo para um faroeste de vampiros. O segundo longa da diretora, já mostra sua percepção aguçada de decupagem. Existe uma cena num bar, com aproximadamente 10 minutos de duração, que é radical, em todos os significados da palavra. 

Em Blue Steel (1989), seu terceiro longa-metragem, temos a primeira mulher protagonista, fato que só se repetiria em A Hora Mais Escura (2012). Jamie Lee Curtis, interpreta a policial novata Megan, que de repente se transforma na obsessão de um assassino em série. Elementos sociais no subtexto dão as caras nesse filme, algo marcante daqui em diante na carreira da diretora. Blue Steel pode ser lido com um clássico filme de ação dos anos 90 – o que claramente se esforça para ser, e talvez esse seja o ponto fraco – e pode ser também um filme sobre relacionamentos abusivos. Obviamente pode ser as duas coisas, e ele tenta ser, e funciona melhor como filme de ação, mas essa indecisão é o que faz o filme, ainda que com boa performance de Jamie Lee Curtis, ser frágil, pouco empolgante.

Essa relação entre entretenimento e discurso político está mais azeitada em Caçadores de Emoção (1991), seu filme de maior prestígio entre o público. Inovações tecnológicas foram criadas para as cenas de surf e perseguição, que são muitas, e como o lugar da steadicam e a habilidade da diretora em trabalhar com essa ferramenta com segurança e inventividade ficam visíveis. Estrelando Keanu Reeves e Patrick Swayze, duas beldades indiscutíveis, em que Reeves é um policial do FBI infiltrado numa subcultura de surfistas assaltantes de banco e Swayze é o líder da gangue. É um conflito de estilos de vida e de entendimento moral da sociedade muito interessante. Além é claro, da crítica contumaz, mas sutil, à política de segurança pública de Ronald Reagan, que era totalmente violenta e repressiva, parte de sua política neoliberal que estava a todo o vapor e vivia seu auge.

Na linha cronológica da cinematografia da diretora, Estranhos Prazeres (1995), que já analisamos nessa série, é um ponto de virada importante. Seja pelo refino de melhores tecnologias, seja pela parceria com o co-roteirista e produtor, James Cameron. Cameron e Bigelow foram casados por três anos, mas se divorciaram antes mesmo do início das filmagens. Muito reservada, pouco se sabe sobre a separação, mas isso não parece ter atrapalhado em nada a concepção e execução do filme. Estranhos Prazeres foi recebido sem muita empolgação por crítica e público, obtendo um fracasso retumbante de bilheteria. A 20th Century Fox, estúdio responsável pelo filme, nunca mais financiou nenhum projeto da diretora. 

Roger Ebert, um dos grandes críticos de cinema, foi contrário a maioria e afirmou que Estranhos Prazeres seria um filme cult com o passar dos anos. Profético como em outras ocasiões, Ebert acertou. O sci-fi da diretora é cultuado pela comunidade cinéfila pelos mais variados motivos. Seja pela inovação tecnológica no POV, pela característica futurista da própria tecnologia em questão, o discurso político intenso sobre a brutalidade policial e por abarcar um dos maiores conflitos raciais da história dos Estados Unidos, os protestos de Los Angeles em 1992, incorporado a um cenário noir.

Filha de um administrador de fábricas de tintas e uma bibliotecária, Kathryn Bigelow, logo se interessou pela arte, especialmente a pintura, como conta em uma longa e completa entrevista que concedeu para o jornalista Gavin Smith da Film Comment em setembro de 1995 para promover Estranhos Prazeres. Depois de uma temporada de estudos no Instituto de Arte de São Francisco, aos 19 anos foi convidada com uma bolsa de estudos através do Whitney Independent Study. Garantido um lugar para estudar e morar, a diretora conta que nesse tempo no Whitney, tinha como conselheiros criativos a magnífica Susan Sontag e Brice Marden. Influenciada pela revolução que as artes conceituais em Nova Iorque passavam no início dos anos 1970, em que os aspectos políticos das motivações artísticas ganhavam força,  Bigelow se reaproxima do cinema estrangeiro, especialmente o francês, quando começa a trabalhar com o arquiteto e artista contemporâneo Vito Acconci. 

Como assistente, ele pede para que ela grave um pequeno vídeo que seria exibido em uma de suas performances. Bigelow conta que nunca tinha pegado em uma câmera, mas que tinha alguma noção do que fazer. Influenciada também por Sontag que sempre conseguiu unir cinema e artes conceituais como ninguém, a diretora diz que a ideia de fazer um curta-metragem, The Set-Up (1978), nasceu pela necessidade de grana através de bolsas de estudo. O curta foca em dois sujeitos que passam quase vinte minutos se socando enquanto um chama o outro de fascista e o outro chama de comunista – relação com o atual mundo é mera coincidência – e ficou restrito à equipe da pós-graduação em Columbia. Esse projeto, muito conceitual, mas extremamente direto e até ingênuo, como ela mesmo conta, já dava o tom do que viria a ser seu primeiro trabalho em The Loveless e de como esses conceitos da expressividade e dos aspectos políticos e sociais da sociedade norte-americana estariam presentes na sua filmografia.

Depois do fracasso comercial de Estranhos Prazeres, Kathryn Bigelow emplacou outros dois projetos também pouco expressivos. O Peso da Água (2000) é a primeira adaptação literária que Bigelow dirigiu. Com Sean Penn no elenco, o filme é um suspense dramático, com situações semelhantes que acontecem entre os dias atuais e um assassinato ocorrido em 1873 numa ilha isolada na Noruega. O filme não está disponível em nenhum streaming no momento e não foi localizado por este colunista nas plataformas não oficiais. O filme teve dificuldade em encontrar um distribuidor e sua passagem pelos cinemas só aconteceu dois anos depois, em 2002. As informações sobre esse filme são poucas e se resumem à sinopse. É possível encontrar pouquíssimas críticas e a maioria em inglês. 

A partir da virada do século, Kathryn Bigelow focou seus esforços em contar histórias baseadas em fatos reais e de maneira direta e objetiva. Seu primeiro filme baseado numa história real, foi K-19: The Widowmaker (2002). Harrison Ford e Liam Neeson são capitães da marinha da União Soviética em 1961 e recebem a missão de testar o primeiro submarino nuclear, o K-19. Neeson sabe que o veículo não está pronto, mas por ser subordinado ao personagem de Ford, acaba se rendendo às ordens. O programa é um desastre, várias pessoas morrem e não à toa foi apelidado de “o fazedor de viúvas”. 

Bigelow constroi a tensão frente às ordens e desordens do comando, a claustrofobia de estar num ambiente radioativo, a iminência da morte e de uma guerra nuclear. O filme só não é mais interessante, pois toda a tensão construída é dissipada por uma linha dramaticamente manipulativa e por uma trilha sonora intrometida. O saldo final é relativamente equilibrado e Bigelow segura as pontas pela sua experiência. K-19: The Widowmaker talvez seja um dos filmes mais tradicionais da diretora, poucos solavancos e deslizes, e no final do dia, parece mais uma comprovação de que União Soviética e energia nuclear nunca foram uma boa combinação.

Os filmes de Bigelow nunca foram afeitos a grandes bilheterias. Nem o prestigioso Guerra ao Terror teve excelentes resultados. No Brasil, o filme foi lançado primeiramente em Home Vídeo e só depois das nomeações e campanha para o Oscar teve seu relançamento nos cinemas. Não foi diferente com K-19: The Widowmaker, a recepção foi mista e não despertou muito interesse. Em uma entrevista para o DGA (Directors Guild of America), ou o Sindicato dos Diretores, ela diz que sua preocupação sempre foi com a arte e seu vínculo afetivo com o projeto em que está trabalhando. O retorno financeiro ou crítico, embora importante, nunca foi sua motivação principal. Sempre trabalhando com orçamentos modestos, mas com uma equipe que a diretora faz questão de valorizar, seus próximos filmes vão se superar e surpreender pelo apuro técnico e de pesquisa nas histórias reais. 

Em Estranhos Prazeres e Detroit em Rebelião (2017), a diretora aborda dois dos maiores conflitos internos dos Estados Unidos, que envolve um dos grandes problemas estruturais do país, o racismo e a violência policial. Os protestos de Detroit em 1967 e em Los Angeles em 1992, formam no hall de debate político promovido pelos movimentos pelos direitos civis, uma das maiores lutas por igualdade e justiça. A diretora não se furta ao debate, quando aponta para a violência e desigualdade racial que existe nas forças policiais do país e a forma como a população afro-americana é sistematicamente agredida. Aponta também, tal qual faz com seus filmes de exército, a hipocrisia dos poderes e das instituições de Estado quando escolhem reprimir e segregar, quando poderiam propor reformas.

Guerra ao Terror e A Hora mais Escura, irão acomodar o poder armamentista da maior potência bélica do mundo. Kathryn Bigelow parece ser uma das poucas diretoras que consegue olhar para esse setor que é motivo de orgulho e patriotismo para a maioria da população estadunidense com criticidade, colocando as contradições na mesa e gerando discussões. Envolto em polêmicas de financiamento e envolvimento com órgãos de inteligência governamental, Guerra ao Terror e A Hora mais Escura são filmes que até contam com a complacência e ufanismo da diretora e equipe, mas que não deixam de apresentar a visceralidade e hipocrisia norte-americana frente às guerras que a potência imperialista trava em outros países. 

É a partir de Guerra ao Terror, que Kathryn Bigelow firma uma parceria frutífera com o jornalista e roteirista Mark Boal. Boal trabalhou como jornalista freelancer em algumas revistas de prestígio nos Estados Unidos. Após sua cobertura na guerra do Iraque, especificamente sobre os soldados do destacamento anti-bombas, o artigo The Man in the Bomb Suit foi publicado na revista Playboy em setembro de 2005 e rendeu o roteiro de Guerra ao Terror. A parceria parece ter surgido como um encontro de boas oportunidades, pois logo de cara são 9 indicações ao Oscar. Premiado em 6 categorias, o maior vencedor da noite, inclusive Melhor Filme, Melhor Direção para Bigelow, Melhor Roteiro Original para Mark Boal, Melhor Edição de Som, Melhor Mixagem de Som – à época eram categorias separadas – e Melhor Montagem. 

Em 2010, um fato curioso não passou despercebido entre os indicados ao Oscar. Kathryn Bigelow concorria por Guerra ao Terror, enquanto seu ex-marido, James Cameron, concorria por Avatar (2009). Ambos os filmes receberam 9 indicações e Avatar amargou uma derrota considerável com apenas 3 prêmios. Naquele momento, o filme de Cameron era assunto em todos os lugares, pela proeza técnica da realização e pela “invenção” – hoje terrível – do 3D e já estava no caminho para ser a maior bilheteria da história do cinema. Essa suposta rivalidade foi assunto em torno da premiação e rendeu piadinhas feitas pelos apresentadores da cerimônia, Alec Baldwin e Steve Martin. Apesar das piadas de mau gosto, o fato é que no momento que Barbra Streisand anuncia a vencedora de Melhor Direção, Cameron parece genuinamente feliz pela vitória de Bigelow. A temporada de premiações em 2010 foi muito rica e interessante, e apesar da dominância de Guerra ao Terror, todos os filmes que concorreram naquele ano ainda hoje são lembrados.

Kathryn Bigelow nunca foi uma cineasta famosa. Seus filmes nunca deram grandes resultados nas bilheterias, talvez por falar sem rodeios sobre os conflitos internos e externos e as enormes contradições dos Estados Unidos. Tratando de temas que até podem ser lidos como universais, a diretora não consegue escapar de uma análise mais apaixonada e muitas vezes crítica de seu país, restringindo o alcance de suas obras. Segundo reportagem da Deadline, seu próximo projeto deve contar uma história de crise nacional que se passa dentro da Casa Branca. Olhar a filmografia da diretora, especialmente agora com o retorno de Donald Trump ao poder, é perceber como uma potência dominante consegue forjar uma percepção tão equivocada do mundo e não perceber as violências culturalmente estabelecidas numa nação que se diz tão poderosa.

Independente dos resultados de bilheteria e reconhecimento público, é impossível negar a força emocional de seus projetos. A indiferença não cabe nas descrições dos filmes da diretora. São filmes que causam impacto e conseguem ser memoráveis, às vezes de forma negativa, mas eles ficam. Kathryn Bigelow é uma das pouquíssimas diretoras de Hollywood que dirige filmes de ação e tem isso como marca na carreira. Ser uma mulher num mundo de diretores e num gênero acentuado pela força e agressividade, prova o quanto Bigelow sabe produzir cinema com fins de entretenimento, ao mesmo tempo que faz um trabalho artístico invejável, impactante e especialmente apaixonado. O reconhecimento público e notório de Guerra ao Terror e Caçadores de Emoção, por exemplo, é só uma amostra do que ela é capaz de fazer com a linguagem cinematográfica e com a arte de fazer cinema.

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