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Crítica: Cidade de Deus: A Luta não Para

Ficha técnica – Cidade de Deus: A Luta não Para
Direção: Aly Muritiba
Nacionalidade e Lançamento: Brasil, 2024
Elenco: Alexandre Rodrigues, Andréia Horta, Thiago Martins, Roberta Rodrigues, Eli Ferreira, Edson Oliveira, Marcos Palmeira, Luellem de Castro, Sabrina Rosa, Rafael Lozano, Leandro Daniel, Jefferson Brasil, Otávio Linhares, Luiz Bertazzo.
Sinopse: Vinte anos depois de Cidade de Deus, Buscapé relata como os conflitos entre a polícia, os traficantes e as milícias afetaram a comunidade.

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Passados mais de 20 anos do lançamento de Cidade de Deus (2002) – que deu uma reviravolta no cinema brasileiro na época da retomada – a nova série original HBO, “Cidade de Deus: A luta não Para”, chegou ao fim da sua primeira temporada nesse domingo (29). De volta está boa parte do elenco do filme, especialmente o personagem narrador Buscapé (Alexandre Rodrigues), que segue o mesmo tom passivo do filme. Novos personagens ganham mais tempo de tela e desenvolvimento, os temas políticos são objetivos e diretos, além de complexificar a discussão sobre os meandros da criminalidade, do poder policial e do poder estatal na estruturação do Estado do Rio de Janeiro.

Em 2004 acompanhamos Buscapé, um grande fotojornalista e que não mora mais na Cidade de Deus. Seu parceiro Barbantinho (Edson Oliveira) é líder comunitário e candidato a vereador da cidade do Rio de Janeiro. Berenice (Roberta Rodrigues), que tinha dado o fora da Cidade de Deus lá no filme, retornou a favela e trabalha no centro comunitário. O novo chefe do tráfico é Curió (Marcos Palmeira), que entrará em atrito com Bradock (Thiago Martins) que estava preso e está retornando à CDD. Engrossa o caldo de intrigas Reginaldo Cabeção (Kiko Marques), já como secretário de segurança do Rio e com envolvimento com a milícia, o tráfico de drogas e de armas, ou seja, tudo como antes só que em maior escala. É para tudo isso e mais um pouco, que “Cidade de Deus: A luta não Para” nos convida e faz boa imersão em seu mundo.

O primeiro episódio faz questão de ser bem didático para lembrar dos grandes acontecimentos do filme e situa onde estão e qual a posição de todos os personagens. Há várias linhas paralelas que vão crescendo ao longo da temporada que nem sempre são lembradas no decorrer dos episódios. Por exemplo, a família do Curió, que começa com uma relativa participação nos primeiros três capítulos, logo é deixada de lado assim que Curió é assassinado por Bradock. Nem tudo é bem amarrado e talvez por já terem a segunda temporada garantida, pode sobrar mais tempo para desenrolar todas essas tramas, mas fica solto. Os novos personagens, tirando Buscapé, Barbantinho, Cabeção e a pequenina participação de Berenice que estavam no filme, acabam tomando conta do protagonismo.

Bradock tem uma namorada, Jerusa (Andreia Horta), que tem interesses por trás, incluindo um novo assunto – pouquíssimo explorado pelo filme – a milícia. Na primeira temporada, a milícia fica como um anúncio de que algo pior pode acontecer, e assim como na vida real, ela está de mãos dadas com o Estado. A questão política recebe muito destaque, incluindo vários embates na câmara dos vereadores sobre a brutalidade das ações policiais, a desintegração dos direitos humanos e a massificação dos moradores da favela como se todos fossem bandidos. Esse é um grande acerto do roteiro coordenado por Sérgio Machado que alavanca novos temas: a milícia, a questão racial bem pontuada e atualizada, a desigualdade e a falta de oportunidades que atravessam vários moradores.

O tom dramático funciona com as cenas de ação que são bem coreografadas e filmadas, mas sofrem com alguma instabilidade na montagem. Embora a série faça referência a câmera na mão e descontrole visual do filme, isso fica restrito ao primeiro episódio, o que é bom. No restante da temporada, as cenas são mais estáveis e nítidas, mas a montagem parece ter perdido a chance de fazer um melhor trabalho na hora de localizar geograficamente a ação. A escolha estética que passa pelo diretor Aly Muritiba – com trabalho elogiadíssimo em Cangaço Novo (2023) que tem um ritmo e estilo muito semelhante – não fica devendo em nada no controle da ação, no posicionamento de câmera, montagem do quadro e direção de atores. Ele divide a direção com Bruno Costa, que nos episódios que está no comando parece ir bem, embora seja menos inventivo que Muritiba.

O ritmo em linhas gerais é estável, não há grandes descontroles e desequilíbrios, mas o segundo episódio parece mais longo do que deveria e gira em torno do próprio umbigo sem avançar no desenvolvimento dos personagens. Curiosamente, o primeiro episódio que gasta muito mais tempo para reapresentar e apresentar todos os personagens, foi mais ágil no desenvolvimento e encaminhamento da narrativa, mas ao chegar no segundo, a história da exclusão familiar e a falta de algo um pouco mais sustentável em torno dos interesses ocultos, quase deixa a bola cair no chão. Faltou trato nos diálogos, pareceu um episódio de vamos-apresentar-os-vilões-malvados, que infelizmente não ficou legal. No terceiro que há uma grande cena de ação extremamente bem coreografada, o ritmo acelera novamente e retoma o crescimento que segue até o final.

Há vários pontos interessantes em “Cidade de Deus: A Luta não Para”, o mais especial são as atuações. Parece impossível pensar na série sem pensar em Roberta Rodrigues. É fascinante o quanto Berenice cresce graças a Roberta, e todas as vezes que aparece em tela é um primor, um avanço excepcional na dinâmica de todos os personagens ao redor. Berenice é uma mulher que come o pão que o diabo amassou, é uma luta atrás da outra. É a negação de se envolver diretamente com Curió; na resistência de fazer o marido PQD (Demétrio Nascimento Alves) não se envolver na briga do tráfico e depois entregá-lo a polícia; poder enterrar Barbantinho em paz – rendendo uma das cenas mais incríveis e emocionantes de toda a temporada no episódio cinco – e ainda fazendo uma campanha para vereadora às pressas. Roberta Rodrigues é uma força hipnotizante. Espero que os roteiristas deem um pouquinho de descanso para Berenice na próxima temporada, pois como ela sofre.

Outro destaque é Andreia Horta que faz um trabalho brilhante como Jerusa, a grande traidora e promotora do caos na Cidade de Deus que, no silêncio, movimenta as peças de xadrez para se dar bem. Mas isso é às custas de Bradock, que é extremamente convincente graças a performance violentamente crível e dramática de Thiago Martins, que imprime medo e instabilidade toda vez que aparece. Ganham pelo menos uma cena muito boa a filha do Buscapé, Leka (Luellem de Castro) – com o empresário e com os policiais no episódio cinco – Alexandre Rodrigues como Buscapé nos momentos com Ligia (Eli Ferreira), que o carisma do personagem aparece na sua sensibilidade e desconfiança, e Cinthia (Sabrina Rosa) quando demonstra apreensão e tristeza no olhar sobre precisar reconstruir após as destruições que passa junto à comunidade.

Cidade de Deus, o filme, catapultou Fernando Meirelles para a direção de outros longas no Brasil e exterior, colocou Daniel Rezende com um grande montador no cenário cinematográfico e alguns atores tiveram chances melhores no cinema e na TV, mas parte deles não conseguiram grandes ou nenhum trabalho e reconhecimento após o fim do filme. Porém, “Cidade de Deus: A luta não Para”, parece fazer, de alguma maneira, alguma justiça com os deslizes de seu antecessor cinematográfico. Não é muita coisa, mas é alguma coisa. A atualização de temas a pautas importantes no debate público não é ignorada, a dualidade de personagens é bem mais interessante e afirmativa do que no filme e coloca em destaque grandes mulheres que são quem sustentam a vida na maioria dos lares e sustentam também a narrativa. E embora Buscapé seja o grande narrador observador da história toda, a série dá vida própria a seus personagens, que coexistem sem a necessidade do olhar dele.

“Cidade de Deus: A luta não Para” reedita muita coisa do filme de 2002, mas a partir do terceiro episódio toma seus próprios rumos e se posiciona muito melhor sobre os temas espinhosos que escolhe tocar. É um acerto falar sobre o quanto a polícia, o tráfico e especialmente a milícia são basicamente a mesma coisa, especialmente na violência indiscriminada, ainda que dentro desses grupos e instituições existam pessoas minimamente humanas e contrárias à forma de funcionamento. A direção geral de Aly Muritiba garante coesão ao tom e ritmo, num equilíbrio quase preciso de ação, drama e desenvolvimento de personagens, embora o roteiro pareça pouco comprometido com todos os personagens que resolve apresentar. É preciso destacar os dois últimos episódios da temporada que constroem com precisão e segurança o caos futuro, ao mesmo tempo que coloca um pouco de esperança sobre a mudança.

O filme de 2002 ocupa um lugar quase místico no imaginário do brasileiro, assim como boa parte do cinema de retomada. Mas a série, embora receba críticas de todos os lados, especialmente por ser mais assertiva em seus comentários políticos, coloca a TV brasileira para os gringos e para nós mesmos, no mesmo patamar do novo cinema brasileiro que tem se reconstruído a duras penas depois do sucateamento do governo Bolsonaro. “Cidade de Deus: A luta não Para” tem DNA brasileiro mesmo sendo facilmente palatável para os gringos, que também tem Cidade de Deus como o representante cinematográfico do Brasil até hoje. É por essas e outras, inclusive pelos deslizes, que a nova série da HBO acerta no tom cinematograficamente brasileiro, político e dramático quando conta de um lugar novo – que parece tão igual – e com ideias atualizadas, mesmo sendo ambientada 20 anos atrás.

  • Nota
4

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