Analisando Kathryn Bigelow: Estranhos Prazeres
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Analisando Kathryn Bigelow: Estranhos Prazeres (1995) e a guerra virtualmente perversa

Analisando a filmografia é uma série de textos que busca desvendar filmes que apresentam a mesma temática desenvolvida ao longo da trajetória cinematográfica de uma diretora ou diretor. Nessa série de cinco textos serão analisados os filmes: Estranhos Prazeres (1995), Guerra ao Terror (2009), A Hora Mais Escura (2012) e Detroit em Rebelião (2017). Por último, um texto final que busca um olhar condensado, analisando pontos em comum das obras realizadas por Kathryn Bigelow.

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Somos cada vez mais observadores do mundo e obviamente somos mais observados – Foucault provavelmente não imaginou que chegaríamos a esse nível de vigilância e Freud não imaginou o quão voyeuristas seríamos. Ao mesmo tempo, estamos cada dia mais distantes da realidade das pessoas, mais violentos e com a humanidade cheia de conflitos inéditos, pelo menos é o que parece. Estranhos Prazeres, quarto filme solo da diretora Kathryn Bigelow, foi profético em muitos sentidos: altos níveis de tensão social quando a democracia capitalista não responde às necessidades das massas e por brincar com a terrível ideia de jamais sair de uma realidade paralela. Estranhos prazeres, assim como várias ficções científicas, é uma leitura antecipada do que viria a ser nosso futuro, e infelizmente ele estava certo.

Apesar de ser classificado como ficção científica, Kathryn Bigelow não é muito entusiasta de Estranhos Prazeres estar no gênero de sci-fi. Segundo o produtor e co-roteirista James Cameron, Bigelow “tratou o filme como um thriller de relacionamento muito direto e com conotações políticas, deixando a tecnologia se entrelaçar na estrutura”, disse em uma entrevista para a Boxoffice Magazine. Apesar da questão tecnológica não ser de fato o grande atributo da película, ela é fundamental para a linguagem cinematográfica e para a mensagem política e social que está nas entranhas do roteiro. De desenvolvimento de novas tecnologias para executar as cenas de ação, até a discussão sobre memória, justiça e consentimento.

Em Strange Days (título original) acompanhamos Lenny Nero (Ralph Fiennes), ex-policial e agora comerciante de discos que possibilita as pessoas, através de um capacete tecnológico, experenciar emoções e sensações de outras pessoas. Após ver uma prostituta que conhecia ser assassinada em um dos discos que recebeu de presente, recorre a ajuda de seus amigos Mace (Angela Bassett) e Max (Tom Sizemore) para desvendar o crime. Ao longo de quase 150 minutos, somos mergulhados em uma trama de espionagem, romance, conspiração, política e redenção.

NEM TODO PRAZER É ESTRANHO, MAS OS DIAS TALVEZ SEJAM

Los Angeles, 30 de dezembro de 1999, virada do século. Esse é o cenário. Logo de cara, somos introduzidos em uma cena em POV (Ponto de Vista) de um assalto a mão armada. Não sabemos quem é o sujeito que “somos”, mas sabemos da cara de seus comparsas. O assalto dá errado e ao fugir da polícia esse personagem que acompanhamos em POV, ao pular do último andar de um prédio se estatela no chão e morre. Imediatamente um corte para Lenny que estava assistindo esse vídeo através de seu capacete. O dispositivo tem nome de SQUID (Superconducting Quantum Interference Device), ou seja, é um capacete que faz ligação direta as ondas do cérebro, permitindo que o usuário “seja” a pessoa e sinta as reações de quem estava gravando. Esse capacete que serve para ver as imagens, também serve para gravá-las. Esse é um feito notável de Bigelow para a época. A precisão com que as imagens em POV são registradas é notável, justamente pelas câmeras da época não serem pequenas a ponto de fazer uma boa execução das cenas.

Para a tecnologia do POV, foi preciso desenvolver uma estrutura nova de câmera e lente para que ela ficasse o mais próximo do olhar humano, logo, isso influencia diretamente na leitura do espectador, que passa a não ter nenhum intermediário para a imagem, sendo a quarta tela do frame. Claramente já existiam vislumbres do que seria a VR (Realidade Virtual), que avançaram muito para ter o que temos hoje. É obvio que os óculos VR que podem ser utilizados na atualidade não chegam nem perto da clareza tecnológica da nossa ficção científica que está em análise, mas se aproxima.

Isso são apenas os primeiros 10 minutos de Estranhos Prazeres. Persiste ao longo da rodagem uma sensação de fim do mundo com a virada do milênio. Tudo estava em intensa disputa e esgotamento; conflitos intensos com a polícia; protestos pelo fim da brutalidade policial; repressão financeira e política; excesso de vigilância pelas forças de segurança e governos; uma ebulição social. Apesar desse intenso clima externo, tudo parece se concentrar no personagem de Lenny, um homem branco, boa praça, mas canalha, que ainda sofre pela separação da ex-namorada Faith (Juliette Lewis), e que faz da noite seu balcão de negócios para vender seus vídeos de pornografia, assaltos, perseguição policial, etc.

Mace, uma mulher negra, amiga de Lenny, vive salvando a pele do amigo com caronas, carinho e cuidado, que as vezes se ferra pois, diferente do amigo, trabalha dignamente para sustentar a família já que o marido está preso. Essa é a dinâmica dos personagens de Bigelow. Tudo muda quando ambos se veem drenados a uma história maior, já que a prostituta Iris (Brigitte Bako), procurava Lenny desesperada para entregar uma fita. Dois policiais a estão perseguindo e querendo matá-la. Paralelo a isso, as TV’s noticiam a morte do rapper Jeriko One (Glenn Plummer). Jeriko, um cantor negro que fazia músicas de protestos contra a brutalidade policial, o racismo e a supremacia branca estadunidense, estava sendo constantemente vigiado pelas forças de segurança pelo  incentivo à protestos nos bairros periféricos de Los Angeles.

Kathryn Bigelow monta um cenário de guerra, e é a partir dessa estrutura que todos os temas são desenvolvidos. É sagaz o quanto a diretora consegue transmitir segurança, força e controle das suas filmagens, já que é notável o apuro e estudo técnico e preciso da diretora em construir a tensão necessária desse ambiente em ebulição. A construção de caos nas ruas; polícia agredindo as pessoas; a resposta das pessoas à agressão; as revoltas pelo assassinato de Jeriko; a sujeira de uma Los Angeles anárquica. É o melhor do estilo cyber-punk e noir clássico, que lembra com muito gosto o memorável Blade Runner (1982). Essas referências estão por todo lado, especialmente por Bigelow ser extremamente competente em trabalhar a dureza desses macro cenários, já que seus 3 filmes anteriores caminham aproximadamente pelo mesma linha narrativa: as forças de repressão na sociedade e o estado de vigilância e paranoia.

A NECESSIDADE DE REGISTRAR (E OLHAR)

O roteiro começou a ser desenvolvido por James Cameron ainda nos anos 1980, mas só tomou forma com a chegada de Kathryn Bigelow. Somou esforços o roteirista Jay Cocks que, segundo entrevistas, teria dado liga aos pontos que James e Kathryn haviam desenvolvido. O ponto que estaria mais em destaque eram as realidades virtuais que já haviam tomado alguma forma como conhecemos hoje e as inúmeras possibilidades da internet. Junto a isso, Cameron dava seus singelos toques de melodrama e romance suavizando a história e a deixando mais palatável. Já Bigelow queria algo mais forte, incisivo e menos romance, buscando captar o sentimento social do que estava ocorrendo na época.

Estranhos Prazeres tem como referência um dos conflitos raciais de maior intensidade na história dos Estados Unidos, os Distúrbios de Los Angeles em 1992, que tem como ponto de partida a filmagem da agressão de policiais a uma pessoa negra. Devido a absolvição de quatro policiais que eram acusados de agredir o motorista negro Rodney King após uma perseguição em alta velocidade, milhares de pessoas saíram as ruas para protestar, porém os protestos se transformaram em saques, assaltos, incêndios, assassinatos e danos materiais. A polícia de Los Angeles falhou em reprimir os protestos que ficavam cada vez mais intensos. A Guarda Nacional e o Corpo de Fuzileiros Navais foram chamados para fazer a repressão dando o fim na escalada do tumulto que já durava sete dias. Após o término dos protestos a polícia passou por reformas e os policiais que agrediram King voltaram aos tribunais.

É com esse contexto de guerra urbana que um dos pontos fortes de Bigelow aparece: sua precisão em trabalhar com cenários que envolvem violência. Em Estranhos Prazeres há várias cenas de explicita violência, como assassinatos, estupro e violações graves de direitos humanos. Porém, e esse é o mérito, tudo é feito da maneira mais fria possível, sem glamorizações e estilização espetaculosa. Isso só fica reservado ao final, quando na passagem de ano, os policiais que assassinaram Jeriko são mortos por outros policiais. Existe um controle de tudo que está em tela e isso faz com que os demais pontos sejam bem elaborados.

Os enquadramentos que Bigelow faz de Max e Faith, sempre indicam para algo um pouco fora do comum. Parece que aqueles personagens, que mais tarde vamos descobrir seus fetiches extremos em voyerismo e escopofilia – já que para existir um voyeur é preciso que haja sua outra parte – estão sempre próximos e estranhamente fazendo jogo duplo – que realmente estavam. Enquanto Lenny continuava preso a seu relacionamento com Faith, na esperança de que ela precisasse ser salva, ela já estava em outra. Aspirante a cantora, Faith estava se relacionando com Philo Gant (Michael Wincott), cantor renomado e agente de Jeriko.

Philo, um homem branco, após o assassinato de Jeriko, que, quando soube, se omitiu para ganhar mais dinheiro com as vendas póstumas, entra num completo estado paranoide de perseguição que, para suportar, escolhe viver ligado no SQUID. Enquanto isso, Max e Faith, unidos pelo desejo e fetiche, assassinam Iris, envolvem Lenny – que estava preso a um passado virtual alienante com Faith – que por consequência envolve Mace. Porém, há um ponto de virada importante nisso tudo. Lenny só passa a se importar com as outras pessoas ao seu lado, quando vê o vídeo de Iris sendo estuprada e morta através do SQUID, já que esse ato esbarra em seu limite ético. Mace, só entra nessa jogada quando assiste a execução de Jeriko a sangue frio pelos dois policiais.

Lenny precisa vivenciar o pior do real através do virtual para entrar na guerra que passa a ser dele. Mace vivencia o virtual para confirmar, e entrar na guerra, o que a cor da sua pele já anunciava. A guerra passa a ser de todos, e Mace toma o protagonismo de encerrar a história da violência policial em Los Angeles. Lenny, evitando ser o salvador branco do filme – um acerto dos roteiristas – se resume a encerrar seu ciclo dependente das memórias e sentimentos de Faith. Mais do que satisfazer seu desejo de ser olhada, Faith precisava de algo mais, vivenciar o olhar e ser olhada, coisa que o SQUID perversamente permite.

Outra referência fundamental para a estruturação de Estranhos Prazeres e sua dinâmica perversa do olhar, é o filme Peeping Tom – A tortura do Medo (1960), em que o voyeurismo e a escopofilia se unem perfeitamente. O POV de Bigelow, usado por exemplo na cena de estupro de Iris, lembra perfeitamente a sensação de Mark em Peeping Tom tentando capturar a essência do medo, ou seja, o prazer está na reação expressa por aquele que é observado e no tesão daquele que observa. O personagem Max do filme de Bigelow, o mais perverso de todos, extrapola sua perversidade ao capturar a audiência do espectador mais importante – Lenny – para seu ato, o que também garantiria a impunidade pelos crimes que cometeu, já que o meio – a imagem capturada –  é a via para a execução do fetiche.

“Estranhos Prazeres utiliza o meio para comentar sobre o meio”, afirma Bigelow em entrevista.

Em linhas gerais, como Peeping Tom e Estranhos Prazeres, todo perverso precisa de um espectador para realizar seu último ato, faz parte do jogo erótico fetichista para o alcance do prazer. Todo perverso tem seus fetiches levados ao máximo, já que o outro existe como mero objeto para o alcance do gozo. Max, de Bigelow, em seus primeiros diálogos, vê o fim do mundo como a solução, a total descrença e desumanidade ao encarar o fim do milênio como a salvação de si mesmo e do tédio de viver. Em entrevista a Film Comment, Kathryn Bigelow  diz que “Estranhos Prazeres é um filme em que somos levados a acreditar que é o fim do mundo ao bater da meia-noite, e todas as forças do destino parecem sugerir que você está convergindo para esse ponto.’’ E para quem não se lembra, na virada dos anos 2000, o bug do milênio causou uma pequena coqueluche na população mundial, criando incertezas e obviamente muita paranoia.

Enquanto Lenny só tem olhos para Faith e Max apenas para si e seus gozos, Mace é a única que consegue compreender a importância maior de ter em suas mãos a fita que mostra o assassinato de Jeriko. Ela é a única que entende, logo de saída, o lugar da coletividade. Por isso que ao longo da rodagem, Lenny busca seu caminho de redenção a todo custo, embora resista. Todos são convergidos a encarar o possível fim do mundo se nada for feito. Essa jornada é brilhantemente representada por atuações muito competentes de Angela Bassett e Ralph Fiennes, que com a direção de Kathryn Bigelow acertam o tom perfeito da sobrevivência, da luta e da redenção “bregamente” concluída com um beijo no final.

Estranhos Prazeres é um filme instigante. A facilidade com que ele trabalha suas linhas narrativas que vão convergir em algo maior e representativo é mérito dos roteiristas, mas a execução de todas essas ideias de forma segura, firme e completamente original, é graças a direção de Kathryn Bigelow. É possível ver a caneta melodramática de Cameron, especialmente no final, mas nada que prejudique a imersão. Curiosamente, parece um grande feito juntar a mão firme e o olhar apurado de Bigelow em trabalhar imagens frias e sufocantes, com o romance de Cameron numa costura especialmente bem amarrada. O grande crítico de cinema Roger Ebert, escreveu que Estranhos Prazeres tem “três coisas que o farão um filme cult”: a criação de “uma paisagem futurística convincente”, “um herói que sai da tradição noir com suas falhas e complexidades em vez de ser simplesmente heroico” e por criar “um vocabulário novo” para situações novas.

Nem todos os prazeres de Estranhos Prazeres são estranhos. Todos somos voyeuristas em alguma medida, uns mais do que outros, é claro, mas o desejo de ver e sentir aquilo que não somos está na nossa constituição como sujeitos. Talvez seja por isso que as redes com seus vídeos ou outras realidades – coisa que o cinema já faz a mais de um século – se transformaram em algo tão sedutor. Elas nos tiram da realidade extremamente opressiva, caótica e angustiante, e nos colocam numa suspensão paralela virtual. A guerra que precisa ser enfrentada não está na virtualidade das experiências, mas na realidade opressiva do capitalismo de vigilância e fatalismo do fim do mundo. O mundo não acabou na virada do século, mas provavelmente ficou um pouco pior, basta respirar para saber, e nesse cenário, não há Realidade Virtual que nos salve da realidade material.

AS GUERRAS DE KATHRYN BIGELOW

Kathryn Bigelow ficou merecidamente reconhecida por ser a primeira mulher na história do Oscar a ganhar o prêmio por Melhor Direção, além de ter vencido como Melhor Filme por seu Guerra ao Terror (2009), que é o próximo filme a ser analisado. Porém, a diretora já vinha numa trajetória intensa com outros filmes de alto calibre, Quando Chega a Escuridão (1987), Caçadores de Emoção (1991), etc. Os filmes anteriores a Estranhos Prazeres não serão analisados pois daria uma outra edição, mas ao começar pela sua grande ficção científica, isso demonstra o quanto Bigelow é capaz de trabalhar temas complexos e urgentes com apuro técnico e estético como nenhum outro.

Como na série de textos sobre a filmografia de Sofia Coppola, nessa edição vamos analisar um recorte da filmografia de Kathryn Bigelow em que as guerras, a supremacia norte-americana e a inspiração ou representação de eventos reais são as linhas mestras na cinematografia da diretora. Me parece possível afirmar o quanto esse primeiro filme em análise extrapola, mas nem tanto, a ideia de supremacia branca da América a partir das suas forças de repressão, especialmente em conflitos raciais. Isso se repetirá nos próximos filmes analisados, reconhecendo o quanto Bigelow consegue trabalhar as inúmeras situações de violência, tortura e repressão de maneira madura e criativa, ao mesmo tempo que foge da espetacularização muito comum em filmes do gênero.

Kathryn Bigelow se mostra, ao longo da carreira, uma mulher que se infiltrou no “mundo dos homens” ao fazer das guerras e da representação de força masculina no cinema seu norte de atuação. Assistir aos filmes da diretora é como ter um olhar estrangeiro dentro de próprio país e das próprias mazelas. Dos conflitos militares em terras estrangeiras – Guerra ao Terror e A Hora mais Escura (2013) – aos intensos conflitos raciais, como em Los Angeles em 1992 e Detroit em 1967, representado em Detroit em Rebelião (2017). O que destaca na filmografia de Bigelow, e foi o que me fascinou para escrever essa série, é sua intensa operação na linguagem cinematográfica e artística, quando costura tão bem a crítica ao próprio modelo estadunidense de paranoia e segurança militar, acontecimentos reais e personagens humanamente complexos, perversos e obcecados com a tarefa, seja ela qual for.

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