Discurso “Red Pill”, misoginia e Matrix: uma discussão sobre internet e anti-intelectualismo
Se você usa as redes sociais com frequência, com certeza já deve ter ouvido os termos “red pill”, “sigma” e “incel” nos últimos dias. Eu sei disso porque eu mesma tenho ouvido – bem mais do que eu gostaria. Eu ouvia muito, sempre sem saber exatamente o que isso significava. Até o dia em que eu coloquei, inocentemente (ou talvez não tanto pois já esperava passar uma certa infelicidade com isso), na barra de busca do aplicativo das dancinhas: “o que é red pill?” e me dei conta de que tinha aberto o bueiro mais misógino, elitista e nojento da internet “gen z”.
Os vídeos de um influenciador digital que tem como sua a frase “mulheres de mais de 30 anos perdem valor no mercado” associam o uso da expressão “red pill”, vinda do clássico Matrix, que por sua vez pega emprestado da contracultura punk dos anos 80 e 90 e seu viés político anárquico, para legitimar um discurso machista e, francamente, nojento, de que estaria mostrando para homens “alfa” – seja lá o que isso quer dizer – a verdade do mundo, a “verdade por trás da conquista das mulheres”.
Quanto mais eu via trechos de podcasts com homens que se diziam “red pill” proferindo verdadeiros absurdos machistas, misóginos e, por sinal, bastante classistas, mais eu me sentia mal por ver algo que vem de um movimento tão legítimo (o movimento punk, anárquico, político), e que foi disseminado pela cultura pop pelas Irmãs Wachowski de forma tão interessante e cheio de alegorias relacionadas à sexualidade e gênero, tenha se reduzido a isso para aquelas pessoas e para aquele grupo que acata suas ideias.
Tenho a compreensão clara de que, dentro do Cinema, como dentro de toda arte, a obra é do mundo depois de ser exposta para as pessoas. No entanto, existe um limite entre o viés interpretativo que você pode dar a esta e o que seria uma completa distorção daquela mensagem, usando os princípios do próprio filme contra o que ele prega, subvertendo, assim, da pior forma possível, a ideologia que aqueles símbolos originalmente carregam consigo e foram intencionalmente postos para início de conversa. Nesse caso em específico, esse tipo de prática acaba, ao invés de complementar ou apresentar uma interessante contraposição, resultando no esvaziamento deles por completo, aplicando um discurso antipolítico e anti-intelectualista em algo que em sua origem sempre foi ambas as coisas.
Dito isso, é preciso saber de onde vem a ideia de “red pill” e “blue pill”, pois antes de mais nada, reforço que percebo como verdadeiramente injusto que estes termos sejam concebidos popularmente como algo diametralmente oposto aos seus significados originais, somente por estarem erroneamente associados a um discurso que em nada possuem em comum. Antes de Matrix (1999), as irmãs Wachowski buscaram ao menos duas dúzias de referências. O filme, clássico e importantíssimo para a história do Cinema, integrou em sua história inspirações diversas que vão desde Alice no País das Maravilhas de Lewis Carroll, passam por Simulacros e Simulações de Jean Baudrillard e vão até o livro Neuromancer de William Gibson.
Na construção da história de Neo, absolutamente nada é por acaso. Houve pesquisas e mais pesquisas, leituras diversas, estudos sobre religião, tecnologia, fantasia, sci-fi, e até mesmo sexualidade e gênero envolvidos. Originalmente, o que os homens “red pill” devem não saber, é que muito antes da expressão ser associada e reduzida apenas a uma “busca por uma realidade”, um desejo de realismo (a qualquer custo e discurso, mesmo os absurdos e mentirosos), estava associada dentro do contexto de uma história que foi feita por pessoas transgênero e cuja mensagem vai bem além da compreensão superficial de como e pra quê funciona na história.
No processo de produção de Matrix, Neo já era compreendido pelas irmãs como uma alegoria para a transgeneridade (basta ver matérias como essa para entender um pouco sobre esse tema complexo que não vou desenvolver nesse texto, quem sabe em um próximo). Imagina agora pensar que esse símbolo “red pill” pudesse se associar a um discurso tão misógino? É, no mínimo, ignorância. Mas infelizmente, não é a primeira vez que isso ocorre na internet. As pessoas têm, para além de distorcido mensagens que não existem, encontrado interpretações difíceis de se defender, esvaziado pautas, sem buscar compreender a verdadeira origem destas.
Quando vejo algo do universo Matrix, que nasceu de uma cultura cyperbpunk que sempre pregou pelo anarquismo e alimenta um pensamento indiscutivelmente anticapitalista, se associar a algo como “mulheres e seu valor de mercado”, mais que irritante chega a ser risível. Não existe nada que justifique isso. Podemos apenas encontrar explicações no crescente movimento anti-intelectualista, como cito acima, de vangloriar a ignorância, que tem crescido como capim na internet. A terra que todos acreditam pertencer a ninguém.
O que, mais uma vez de maneira infeliz, também acaba se relacionando com algo presente no filme: a internet como esse ambiente anárquico, inspirado na sua origem que renega o controle do Estado, que dentro do filme mostra sua força para combater o sistema “blue pill”, na vida real sendo usada meramente a fim de perpetuar um debate completamente nocivo sobre mulheres (gênero) e distorcer símbolos e seus propósitos, dentro de um filme e de um movimento, no geral.
É irônico, ainda, porque “red pill” e “blue pill” estão associados à discursos políticos diferentes, e pode ser visto também pela relação que infere entre libertários e reacionários. Tendenciando, claro, pro lado mais progressista desse discurso. Algo que vai muito, infinitamente, além de perceber a realidade como “mulheres que vão te dar bola apenas porque dinheiro é a única coisa que você tem para oferecê-las”. Como pode então que, nas redes sociais, esse termo tenha sido apropriado por grupos que disseminam tais ideias, sempre extremistas e ligadas à direita mundial, começando pelos comentários de ódio? Porque essa não é a primeira vez em que o público nerd faz isso, eu percebo. O reacionarismo além de propagar esse discurso que cresce como capim, o qual citei anteriormente, também embasa essas pessoas em suas “discussões” rasas.
Deve existir algum estudo, com certeza, para tantas coincidências entre discursos de ódio proferidos por tantos de fandoms de cultura pop, que os relacionem diretamente a grupos políticos radicais e discursos de ódio. Por enquanto, eu continuo percebendo essas ligações assustadoras com muito receio, fazendo o que posso, como expondo esse pensamento, para propagar uma visão menos odiosa e mais condizente com as próprias obras que eles dizem ser aficionados por.
Pois afinal, se suas convicções e os símbolos que você usa para embasá-las são tão prejudiciais a tantas pessoas e, de quebra, ainda são esvaziados do seu contexto original, pra que raios se preocupar em debatê-los em primeiro lugar? O ódio, a misoginia, o racismo e a homofobia dentro dessa comunidade na internet têm nos levado para um abismo da ignorância, onde não pensar, apenas odiar, se torna o novo “cool”.
Usar espaços online de forma democrática para debater esses temas é a nossa única saída no mar da anti-intelectualidade, onde enquanto meia dúzia de pessoas patéticas irão bater no peito para reproduzir discursos misóginos “red pill” como robôs que sejam, uma outra dúzia irá usar o mesmo espaço e sua visibilidade para desmentir todo esse processo de falácia, apenas pelo poder da retórica – que é o mais democrático e o que temos, literalmente, nas mãos.