O livro não é melhor que o filme: adaptações literárias no Cinema
Artigo

O livro não é melhor que o filme: um ensaio sobre adaptações literárias no Cinema

Duas da tarde de uma segunda-feira qualquer, a mesma discussão bate na nossa “porta” e se instala nos assuntos mais falados do dia, onde faz morada por algumas horas, mas logo depois desaparece na intenção de dar espaço a uma nova e efêmera discussão, não raro carinhosamente descrita como “só existe no Twitter”. Mas, será mesmo? Ultimamente, discutir adaptações literárias para o Cinema tem trazido à tona não só o racismo e a homofobia dos fandoms, como tem reacendido um questionamento antigo em mim: porque queremos tanto que o Cinema seja igual à literatura? Afinal, de onde vem tamanho incômodo não só quando os personagens são adaptados para as telas sem as características físicas que esperamos, mas também quando os filmes se recusam a ser ipsis litteris aquilo que lemos?

Eu devia ter uns 10 anos quando me tornei uma leitora compulsiva. Muito antes de ser cinéfila, os livros de fantasia infantojuvenis fizeram parte da minha vida e construíram meu repertório literário do zero, me fazendo criar um afeto particular com o mundo da escrita desde muito jovem. Naturalmente, como muitas crianças nascidas nos anos 90, Harry Potter foi uma espécie de rito de passagem para mim e eu sentia prazer em, mesmo tendo pego o barco já andando, ler os livros antes de assistir aos filmes. Me lembro de ir ao Cinema e dizer, com a maior superioridade que a idade podia me dar, que “o livro era melhor que o filme”. Sempre. Como se a literatura estivesse indubitavelmente sempre acima das imagens. E como se, porque a história não estava exatamente apresentada do modo em que li, lhe faltava credibilidade – ou qualidade.

Continuei assim por muito tempo. Cobrei não só que Harry Potter desse mais ênfase à Gina Weasley, como cobrei que Crepúsculo aprofundasse ainda mais os Volturi em Eclipse ou que Jogos Vorazes tivesse retratado o Snow desde o início… Também fiz parte do time daqueles que reclamavam quando o ator (ou atriz) escalado para o papel da mais nova adaptação não tinha as exatas características físicas que eu imaginei que teria. Não fazia o menor sentido imaginar um personagem moreno, com um ator loiro, por exemplo. E eu fiz esse papelão várias vezes, quando passava dias tentando fazer paz com o fato de que aquilo não tinha que responder às minhas expectativas (e de outros tantos fãs) e que isso não iria mudar.

Foi apenas no auge dos meus 16 anos, quando me tornei uma consumidora compulsiva de filmes, deixei um pouco a literatura de lado e criei um afeto completamente diferente pelas imagens, que passei a ver o Cinema como uma arte autônoma, que nada me devia. E hoje, sete anos depois, fiz paz com o fato de que as palavras, no Cinema, são apenas um pedaço de papel. É claro que diálogos importam, mas quando as imagens dizem mais, palavras podem ter um significado completamente distinto do que antes só existia em papel. Filme após filme, o apelo das imagens foi fazendo total sentido para mim e as palavras foram ficando de lado, dando espaço para uma interpretação cada vez mais esclarecedora e que apesar de parecer óbvia, ainda precisa ser dita: o Cinema nunca vai ser a Literatura. E vice-versa. Ainda bem.

Por mais que queiramos muito e que, diversas vezes, essas artes peguem emprestado elementos umas das outras, o Cinema, a Literatura e o Teatro jamais serão iguais. Em mais de 100 anos de história, é até cômico pensar que o Cinema continua clamando por um lugar só seu, distante da literatura e do teatro. Quantas vezes iremos precisar ouvir que um filme é um “teatro filmado” ou que é ruim porque “modifica demais o livro”, para que finalmente haja a compreensão de que o Cinema é uma arte a qual, embora impura (como diria Bazin), é completamente autônoma em contar suas histórias unicamente através da imagem em movimento? A sétima arte tem a sua própria ciência, na montagem, na fotografia, a cada frame por segundo, algo que jamais vai ser o mesmo que palavras escritas em folhas de papel. É preciso compreender que não existe arte superior à outra. Se a Música não é superior ao Teatro, então porque ainda consideramos a Literatura superior ao Cinema?

Parte disso vem da própria história recente do Cinema quando comparada às outras artes. Durante anos, um dos principais objetivos da sétima arte foi convencionar uma linguagem própria que estivesse distante das demais artes, a fim de classificá-la como uma arte em si mesma. Quando contraposta à literatura, que existia há séculos quando o cinema chegou, a sétima arte teve que reafirmar seu lugar e impor sua própria ciência durante mais de um século de existência – e tenta até hoje. Por isso, toda vez que falamos “leia o livro antes do filme”, estamos ajudando a reforçar uma ideia que tenta ser combatida desde o princípio da história do Cinema: a de que o Cinema é uma arte em si, que possui seu próprio valor e linguagem, seja a obra adaptada ou não.

Portanto, antes de dizer “leia o livro antes do filme”, porque não dizer o contrário? Ou melhor, porque ainda insistir em condicionar um ao outro? Um filme, por mais que seja uma adaptação de uma obra literária, se utiliza de mecanismos completamente diferentes da literatura para fazer sentido em si mesmo. No Cinema, não existe tempo hábil para interpretação literal de centenas de palavras escritas em mais de 400 folhas de papel, por exemplo. E mesmo se existisse, que graça isso teria? Se queremos que o filme seja sempre uma apenas uma reprodução exata daquilo que imaginamos, não tenhamos dúvida de que sempre iremos sair frustrados de qualquer experiência cinematográfica. Pois esse não deve ser o papel do Cinema e, ao menos teoricamente, nem o nosso enquanto espectador.

Tudo isso conversa não apenas com o profundo descontentamento sentido quando o filme não segue o desejado, vendo o livro como um roteiro-manual, mas também quando ocorre o contrário, e a falta de imaginação de um diretor o limita a apenas reproduzir o que foi posto em uma folha de papel. Não existe algo pior que assistir a um filme com pouca imaginação e inventividade, mesmo com todas as infinitas possibilidades que o Cinema possui de utilização de seus recursos. Ver um filme que usa o livro como um manual e seus elementos como uma checklist ao invés de uma base sólida para sua história e construção de um universo, é no mínimo frustrante. Adaptações devem ser nada mais que isso, adaptações. É preciso compreender que linguagens diferentes jamais terão resultados iguais, e que “tá tudo bem”.

A ausência dessa cobrança excessiva permite não apenas que estejamos em paz quanto às escolhas de elenco, por exemplo, como também permite que tenhamos uma experiência muito melhor com a obra. Até porque, convenhamos, assistir a um filme despreocupado se todos os detalhes correspondem ao livro, deixa por si só a experiência de assistir muito menos cansativa. Em suma, não deve ser sobre o que corresponde ou não. É muito mais sobre o que o filme conseguiu passar ao seu próprio modo, com sua linguagem própria, a mensagem que teve como base uma obra literária (a qual com certeza passou ao seu próprio modo e também com sua própria linguagem, a sua mensagem).

Se toda discussão que surge às duas da tarde na rede social do pássaro azul sobre isso, passasse pela compreensão de que uma arte não deve nada à outra e que não precisa se sobrepor à outra para ter qualidade, tudo seria muito diferente e, talvez, não teríamos tanto espaço para pessoas que, na urgência de exporem seus pensamentos sobre o assunto, o utilizassem como pretexto para expor seus próprios preconceitos. Não existe isso de que a Hermione ou a Annabeth não poderem ser negras, e não apenas porque essa cobrança é absolutamente racista, mas como também porque o filme não deve absolutamente nada ao livro. Desde a construção de sua história, até as mais ínfimas características de seus personagens.

Elenco da nova série da franquia Percy Jackson

Para o filme, o livro é uma base e não um manual. Adaptar uma obra para o Cinema deve ser tudo menos limitante e a arte deve ser livre para interpretar o que quiser ao seu modo. Não cabe a nós, nem mesmo a quem é fã, esse tipo de cobrança. É contraproducente. Em mais de um século de história da sétima arte, urge compreender o Cinema como uma arte em si mesma. Libertar-nos, coletivamente, do debate exaustivo sobre o Cinema e a Literatura, o Cinema e o Teatro, e por aí vai, significa finalmente entender essa arte relativamente nova para a nossa História como tão importante quanto as demais.

Por isso, quando pensar em reproduzir a máxima “livro é melhor que o filme”, pense de novo. Às vezes, comparar o incomparável, por mais tentador que seja, é impraticável. E, nesse caso, só ajuda a reforçar um pensamento que já deveria ter sido superado desde as primeiras teorias do Cinema. Dito tudo isso, eu não garanto que você vá sentir uma mudança imediata da próxima vez que for ao Cinema ver o novo filme do seu livro adaptado favorito. Você ainda pode – e provavelmente irá – sair um pouco frustrado, seja com qualquer aspecto que não foi como você pensou que seria. Expectativas existem para serem quebradas. No entanto, posso garantir que se depois de hoje, ao menos uma parte de você questionar-se qual o ponto de compará-los, é muito provável que a sua relação com o Cinema já mude para melhor. E isso, só isso, já é o suficiente para mim.

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