Quais são as verdadeiras intenções da Ancine com o setor?
Se você já me acompanha nas redes sociais, deve ter me visto falando sobre o Grupo de Trabalho (GT) criado pelo Ministério das Comunicações para discutir as regulamentações impostas pela Lei do SeAC, a famosa Lei da TV paga.
O GT foi composto por lideranças do Ministério das Comunicações, da Economia e da Anatel, deixando a Ancine de fora de uma discussão extremamente relevante para os rumos das políticas públicas do audiovisual, afinal, estamos falando do nosso principal marco regulatório.
Muito me questionei sobre essa decisão: de certa forma, sob o governo Bolsonaro, ela não me pareceu absurda, afinal é de praxe o que ele tenta fazer com a Ancine já que não tem o poder de acabar com ela.
O interesse de Bolsonaro e o ministro das comunicações é somente um: afrouxar o regimento regulatório e jurídico em prol dos grandes conglomerados estrangeiros que vêm estreitando laços através do lobby desde o governo golpista de Michel Temer.
Na conta entram os estúdios que fazem parte do MPA (Motion Picture Association), como é o caso da Netflix, Disney, Warner, Paramount e Sony, que desejam se alocar aqui com seus serviços de streaming sem serem cobrados por alguma legislação que já enfrenta em lugares como a União Europeia.
O saldo, que já vem sendo bastante negativo, se agravou quando o setor tomou conhecimento das alternativas impostas pela resolução do mesmo de GT: deixar morrer a cota de tela para TV a cabo, aprovar a fusão de empresas e um estímulo ao “livre comércio” que não existe sem uma regulamentação vigente.
No entanto, o que já era bastante complicado ficou ainda pior após a Ancine divulgar seu próprio estudo sobre os avanços e as amarras que o SeAC hoje perpetua no cenário do audiovisual brasileiro.
Servidores da agência tiveram que brigar para a divulgação do estudo, que só veio a se tornar um documento público depois de uma determinação judicial da CGU (Controladoria Geral da União), mas que ainda não conta com o teor de seriedade e verdade que deveria ter.
Em mais de 100 páginas, a agência se compromete a admitir que a Lei da TV paga realmente causou uma revolução ao audiovisual brasileiro, permitindo não só uma maior arrecadação de recursos para o FSA, como também gerou uma produção independente em cadeia, melhorando os índices de emprego, renda e um impacto 100% positivo no PIB do país.
Embora ela seja bastante clara neste quesito, por outro lado tenta induzir a todo custo o seu leitor (leia-se: todo um setor em desespero) de que as atuais regulamentações são uma coisa do passado e que o mercado brasileiro consegue se “autorregular” com o advento do streaming, uma vez que o catálogo das plataformas não carece de uma programação preestabelecida.
Para sustentar o péssimo argumento, o estudo tenta provar –– por meio de dados concentrados nas regiões metropolitanas –– uma verdadeira morte da TV a cabo e uma preferência crescente ao streaming. Tudo poderia ser bastante aceitável se, por sua vez, a agência não começasse a separar os públicos a partir dos 4 anos de idade.
Não que o streaming não chegue mais rápido e melhor para crianças de 4 a 12 anos ou ainda de 12 a 17 anos, mas em sua maioria, são serviços pagos pelos pais que estão na faixa etária de 30+ e da qual o próprio estudo não consegue provar a mesma preferência ao formato.
Ou seja, para famílias das regiões metropolitanas analisadas pelo estudo, uma grande parcela que não foi tão atingida pela pandemia e sua crise econômica, permanece sendo assinante do streaming e da TV a cabo.
Se pudéssemos ter contato com o resto do país no estudo (algo que deveria ser obrigação de uma agência federal), os números da TV a cabo seriam ainda maiores, mesmo com toda a evasão de clientes nos últimos anos.
Soma-se isso a triste postagem do Mário Frias em uma de suas redes sociais parabenizando o compromisso do atual diretor-presidente Alex Braga em servir o governo.
Embora não seja novidade para quase ninguém o viés liberal de Braga, o dirigente vem endossando nos bastidores uma desarticulação da regulamentação, principalmente a do streaming, da qual sequer se tem notícias de quando será, de fato, agraciada pelo Congresso de maneira correta.
Uma agência de competência federal e que deveria estar servindo à sua própria população, principalmente no que diz respeito a dar respostas concretas sobre o futuro dos investimentos, vem se escondendo atrás do lobby perpetuado pelas grandes empresas estrangeiras com grande interesse de dominação do mercado.
O viés ultraliberal da nova diretoria da Ancine em nada auxilia grande parte do audiovisual brasileiro. Muito pelo contrário: é possível perceber a vontade e o estímulo de ajudar somente grandes produtoras no Brasil, abrindo mão de proteger a verdadeira mão de obra e impulsionar a indústria.
Enquanto isso, notas mais animadoras são divulgadas para a imprensa e para o setor que ainda tem esperanças de ver dias melhores. O fim de 2021 e início de 2022 não serão nada fáceis para o audiovisual brasileiro. É preciso tentar empurrar com a barriga as poucas coisas que ainda estão vigentes e tentar uma mudança de cenário a partir de 2023, se é que as eleições permitirão.