Coringa não exalta nem inspira a violência; nós que o fazemos
Este texto contém spoilers do filme “Coringa” (2019)
Em dado momento o cérebro passa a emitir sinais para os músculos que passam a enrijecer-se após o comando. O fígado passa a sintetizar mais açúcar fornecendo energia extra para o corpo. Os processos de coagulação se aceleram, reduzindo as terríveis conseqüências de possíveis perdas de sangue. A pele fica vermelha com aumento do bombeamento de sangue. Coração acelera, corpo aquece, a adrenalina deixa o corpo em estado de alerta. Estas são as reações de qualquer mamífero, incluindo nós, seres humanos, quando estamos diante de uma situação de violência. Automaticamente, o corpo se prepara para o ataque, diante de qualquer ameaça — seja ela real ou imaginária. Quando a ameaça se esvai, sentimos um relaxamento que o corpo entende como uma recompensa por superar tal ameaça. Dai, sentimos satisfação.
A violência faz parte da nossa humanidade e está presente em nossas vidas desde sempre. Porém segundo o professor Frederico Graeff, da Universidade de São Paulo – Ribeirão Preto, um dos raros especialistas brasileiros num ramo relativamente novo da ciência, a Psicobiologia, a violência não é inata do ser humano como um instinto biológico. Há um fator cultural e social que nos estimula a buscar a violência. Aqui no Cinem(ação) há inclusive um episódio do podcast da casa falando sobre a violência no cinema e por que ela é tão atrativa. Este tema, que pode englobar não apenas o cinema mas outras artes, voltou a ser pauta após a estreia do filme “Coringa” de Todd Phillips. Para muitos, o filme apresenta um risco real a sociedade ao validar as ações violentas do personagem como justificativa ao sofrimento a ele imposto.
Coringa é um dos filmes mais irresponsáveis que eu já vi na vida.
A Warner e a DC toparem esse roteiro nos tempos atuais é muito sem noção. Não tem nota de repúdio à violência que alivie o que foi feito.
Vai m0rrer gente por causa desse filme, escuta o que eu tô falando. https://t.co/H4g8YFnBMJ— Esperon (@esperondo) October 3, 2019
Vou contar a experiência que tive após a sessão de “Coringa” no dia da sua estreia. Ao final do filme, uma parte do público aplaudiu efusivamente o que acabara de ver. Não serei capaz de dizer se as palmas foram motivadas pelo filme que viram ou pelo personagem. No vídeo que fiz lá no meu Canal, falo sobre isso, porém alguns comentários de usuários me chamaram a atenção. A maioria dos comentários eram de pessoas que viram o Coringa apenas como vítima, apesar do vídeo deixar claro minha posição quanto ao personagem ser um covarde que se vale da desesperança de uma classe subjugada para impor sua psicopatia. Ou seja, por mais que eu tivesse a intenção de mostrar que Coringa não deve ser digno de complacência, dado o que eles faz ao final do filme, e que nossos olhos devem se voltar para o seu entorno (a sociedade), alguns poderão chegar a outras conclusões.
Este episódio me fez refletir sobre a maneira como alguns estão enxergando a obra de Todd Philips. Naturalmente que o diretor ficar respondendo de forma atravessada e com declarações infelizes pouco contribui para melhorar o debate acerca da obra. Mesmo assim é possível encontrarmos vídeos de psicólogos, políticos e jornalistas que não são de área da cultura debatendo sobre a tal possível influência da obra. Como já mencionado no exemplo que presenciei no Canal, interpretar o filme como uma ode à violência é algo que foge do controle do cineasta e dos demais envolvidos na obra. Já tivemos casos de violência brutal cometido com inspirações na mais diversas obras como por exemplo, o filme “Assassinos por Natureza”, dirigido por Oliver Stone, que inspiraram dois jovens alunos a matarem 15 pessoas em uma escola. Aliás, esse filme supostamente teria inspirado diversos outros assassinatos nos Estados Unidos. Outro caso foi a música “Israel’s Son” do Silverchair que virou alvo da justiça por supostamente inspirar um assassinato, porém a banda foi inocentada da acusação.
Há também diversos casos onde jogos de vídeo-games são culpabilizados de influenciar comportamentos violentos em pessoas, inspirando-as a cometer atos de brutalidades como os recentes ataques em escolas. Porém, o que se vê nestes casos é que o ato da violência nunca é causada por um evento isolado. Observa-se sempre uma confluência de comportamentos prévios e distúrbios psicológicos entre os agressores. O mesmo ocorre com Arthur Fleck (Coringa). Ele não passa a matar aquelas pessoas única e exclusivamente por conta da opressão sofrida. Isso é apenas parte do problema. Fleck já tinha passagem por uma clínica psiquiátrica, o que já mostra problemas prévios. Além disso, o personagem sofrera diversos traumas quando criança o que novamente agrava seu quadro psicológico. O que motivou Fleck a atirar naquela primeira pessoa não foi a luta de classes, nem um ato de justiça. Ele o fez por defesa própria e a partir daquela ação, Fleck percebe que a violência é tudo que lhe resta. Não há nada de heroico nisso, principalmente depois do que ele faz com a personagem de Zazie Beetz. Há quem diga que existe uma certa dúvida quanto ao que realmente aconteceu, mas como reagimos à obra conforme a enxergamos, eu vejo que Fleck a matou. Talvez vendo a cena de novo isso mude. Mas o fato é que Arthur Fleck é posto como um psicopata covarde, porém, assim como algumas pessoas não o estão vendo como tal, aquelas pessoas no filme que o aplaudem após executar uma pessoa em rede nacional fazem o mesmo.
Assassinos apresentam motivos diversos para justificarem suas ações, mas estes motivos nunca são unicamente um filme, um livro, uma música ou um game. O autor do tweet citado acima diz que pessoas vão morrer, e sim, isso é verdade. Porém, as causas disso não será o filme “Coringa” e sim outros fatores sociais e/ou psicológicos.
Este caso do “Coringa” me lembrou muito “Tropa de Elite” dirigido por José Padilha. Para muitos, o filme exalta a ação do Bope e justifica suas ações – e isso realmente acontece, afinal Padilha nos aproxima do Capitão Nascimento e nos afasta da favela, porém, isso é um retrato real do que realmente acontece. Veja o que é o Estado do Rio de Janeiro e sua política genocida. Pessoas aplaudem e vibram quando um bandido é alvejado, ou como o próprio Witzel diz, é abatido. Em “Tropa de Elite” o Bope representa essa política belicosa de extermínio, e isso é posto na obra. Quem vê Capitão Nascimento como herói, já tem em si o pensamento do extermínio.
O argumento que algumas pessoas utilizam para condenar o filme é de que o filme “dá voz” a estas pessoas e normatiza tais violências, porém, a violência já está presente nas pessoas. A existência do filme ou não, é irrelevante para o surgimento ou agravamento destas violências. Um exemplo utilizado para justificar esta ideia é do filme “O Nascimento de Uma Nação” de D. W. Griffith e o ressurgimento da Ku Klux Klan, entretanto, essas pessoas já existiam antes do filme. Elas apenas se utilizaram da obra para recrutar pessoas que já eram racistas. Eu nunca assisti à esse filme repugnante e digo com tranquilidade que nunca o assistirei, mas não defendo a sua inexistência pois ele é um retrato de sua época. É um registro histórico de um fato que deve ser lembrado para ser combatido.
A famosa frase de Eric Rohmer, imortalizada no Brasil pelo crítico Pablo Villaça resume bem o que quero dizer: “todo filme é um documento histórico do seu tempo”. Nós não nos tornaremos violentos por causa do “Coringa”. “Coringa” é um filme violento por nossa causa. O filme é o reflexo da nossa violência, da forma como nós, sociedade, lidamos com nossas frustrações, perdas, opressões e injustiças.
Vale registrar que existem estudos que mostram que o excesso de exposição a imagens violentas pode trazer consequências reais nos jovens, porém estamos falando de excesso de exposição e de jovens abaixo de 17 anos de idade, o que justifica algumas críticas quanto a classificação etária do filme, que deveria ser +18. De novo, não podemos limitar o debate a um fator único.
Mas me diga o que você pensa sobre isso? Comente aqui embaixo se “Coringa” representa algum risco ou não.
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