Shirkers (2018) – Crítica
Shirkers venceu o principal prêmio de direção (Sandi Tan) na categoria de documentários da 19ª edição do Festival de Sundance e é indicado a Melhor Documentário nas próximas edições do Spirit Awards e Gotham Awards.
Ficha Técnica
Direção: Sandi Tan
Roteiro: Sandi Tan
Elenco: Sandi Tan, Sophia Siddique Harvey, Georges Cardona, Philip Cheah, Jasmine Ng Kin Kia
Nacionalidade e Lançamento: Singapura (26 de outubro na Netflix)
Sinopse: Rodado em 1992 e fruto do trabalho das jovens Sandi Tan, Jasmine Ng e Sophie Siddique, Shirkers deveria ter sido um clássico cult de Singapura — deveria, se o filme de 16 mm não tivesse sido roubado por Georges Cardona, o professor americano e mentor do trio que desapareceu enigmaticamente. Mais de duas décadas depois, Sandi, retorna ao país de sua juventude, onde tem um encontro com as lembranças do homem que a ajudou a realizar seu sonho e ao mesmo tempo o destruiu. De uma forma quase mágica, ela se reencontra também com o filme de 1992, ressuscitado de um jeito que ela nunca poderia ter imaginado.
O cinema independente em sua essência sempre encontrou dificuldades em sua realização, o custo de produção muitas vezes é considerado elevado e há uma dificuldade principalmente em conquistar a confiança dos estúdios e distribuidoras para que esses projetos sejam finalizados e consigam uma exibição digna nos cinemas, chegar ao público e finalmente serem “eternizados”, se assim podemos dizer. No caso de Shirkers (a obra fictícia, não o documentário que acabou por levar o mesmo nome), estes foram os menores dos problemas, seu maior empecilho foi um de seus realizadores, que num passe de mágica aproveita para escapar com todas as filmagens do que indicava ser uma grande criação, mas que nem por isso deixou de ser eternizada.
Na própria narração, onde Sandi explica o título de seu filme ouvimos: “…uma palavra que significa fugir, evitar responsabilidade, escapar.”. É de suma importância fazer uma ligação entre esses termos e a obra. Na época de sua realização, quase no final da década de 80, a Singapura era um território estritamente conservador e autoritário, o que de praxe em regimes como esse toda e qualquer manifestação artística corre o risco de ser ameaçada e sofrer censuras, o cenário do cinema independente do país era escasso e pouco original, o que concedia ainda mais fôlego para a pequena equipe criar Shirkers à qualquer custo, pois esta seria a obra responsável por causar uma ruptura no cinema comercial e impulsionar o cinema autoral, possivelmente dando início à um grande movimento, uma espécie de nouvelle vague singapurense.
Aqui temos duas obras distintas mas que se complementam e por conta disso adotam o mesmo título, o documentário em partes expositivo e participativo, narrado em primeira pessoa pela diretora Sandi Tan aborda o processo de produção de seu primeiro filme, onde é a roteirista e interpreta a sua principal personagem, S, nome e letra que aqui fazem alusões óbvias à palavra “shirker”, atribuída a alguém que esquiva e foge de todas as responsabilidades possíveis em seu dia-a-dia para viver sem preocupações. É difícil imaginar o potencial que seu primeiro road movie alcançaria, pois é oferecido ao espectador apenas alguns planos e sequências, porém, Sandi conta em detalhes como foi a jornada de origem do filme experimental e o destino que tomou, sendo isso o suficiente para que o espectador passe a acreditar na grandiosidade do projeto e fique tão intrigado quanto a própria diretora e sua equipe por este não ter sido finalizado e quase jogado no lixo por um dos colaboradores, uma figura repugnante e misteriosa chamada Georges Cardona.
Georges era o professor do curso de cinema em que Sandi e sua melhor amiga de infância estudavam, um contador de histórias que tinha a habilidade de persuadir qualquer um que se aproximasse. E por algum motivo, ao ser designado como diretor do projeto, passou a tomar decisões estranhas sempre contradizendo as reais criadoras da obra, suas mudanças e adições no roteiro sempre partiam de ideias já existentes (o que não agradava Sandi e o resto da equipe), impediu que o compositor convidado para criar a trilha do filme visitasse os sets de gravação, após um longo e exaustivo dia de gravações não avisou a equipe que a câmera havia parado de funcionar, entre outras interferências que serviram de impasses para a realização de Shirkers.
Por ser o diretor, Georges ficou encarregado de levar todos os rolos de filmes para realizar a montagem do longa a ponto de ficar pronto para a edição do Festival de Cannes que aconteceu na época, enquanto Sandi, Jasmine e Sophie apenas esperavam, entretanto, o diretor não deu mais sinais de vida e somente após alguns anos recuperaram os materiais para a finalização do longa, porém, se já não tivessem sofrido o bastante, não encontraram qualquer vestígio dos áudios das filmagens nos rolos recuperados. Era de se esperar que a roteirista desistiria do projeto após ter todo seu trabalho desperdiçado, mas sua fúria sobre Georges parece a ter fortalecido ainda mais para a realização do documentário, e por mais que este tenha sido finalizado, é inevitável dizer que Georges se tornara o fantasma que a assombraria para sempre.
O impacto causado pelo diretor na vida das três amigas é imensurável, mesmo após todo esse pesadelo, as marcas deixadas por ele ainda não cicatrizaram e talvez isso nunca chegue a acontecer, suas relações nunca mais serão como antes pois tudo o que fizerem juntas remeterá a este episódio conturbado de suas vidas. E ainda mais intrigante é imaginar que nunca sequer teremos a oportunidade de visitar a obra que “adotamos” durante este documentário, e que hoje existe apenas no pensamento de suas idealizadoras.