Crítica: Depois da Caçada – Festival do Rio
Depois da Caçada
Direção: Luca Gadagnino
Roteiro: Nora Garrett
Nacionalidade e Lançamento: Estados Unidos, Itália, 2025
Elenco: Julia Roberts, Andrew Garfield, Chloë Sevigny, Ayo Edebiri, Michael Stuhlbarg, Thaddea Graham, Will Price, Bella Glanville.
Sinopse: Uma professora universitária se encontra em uma encruzilhada pessoal e profissional quando uma estudante decide fazer uma grave acusação contra um professor da mesma instituição. Agora, a professora será obrigada a confrontar dilemas sobre lealdade, justiça e verdade depois que o conflito se intensifica no campus e ameaça expor seus segredos.
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Luca Guadagnino é um diretor que parece ir crescendo na sua construção de ideias a cada filme. Não que necessariamente sejam um melhor do que o outro, mas parece um cineasta que está sempre amadurecendo a cada novo trabalho, solidificando suas próprias ideias e concepções sobre a formatação do seu próprio cinema.
Os dois lançamentos que teve em 2024, “Rivais” e “Queer”, demonstram isso muito bem. Dois longas completamente diferentes entre si, mas que denotavam uma tentativa de abordagem bem única e evidente para cada um. O primeiro, em uma grande brincadeira sobre o universo do sexo. No segundo, em um grande estudo de personagem.
Em “Depois da Caçada” é possível ver que ele se utilizou um pouco desses dois âmbitos. Porém, acima de tudo, quis puramente provocar. Ao mesmo tempo que idealiza um filme sobre um mal-estar do choque entre gerações também realiza um olhar profundo sobre uma mulher que busca se compreender enquanto alguém que pode ultrapassar as próprias feridas e ser alguém que não vai estar relacionada a elas. E feridas essas, muitas vezes, fabricadas por ela.

Na trama, essa personagem, Alma (Julia Roberts), uma professora universitária em Yale, nos EUA, vive um grande dilema. Sua estudante prodígio de doutorado, Maggie (Ayo Edebiri), acusa outro professor e seu melhor amigo Hank (Andrew Garfield) de a ter abusado sexualmente.
É preciso deixar claro que não é possível ir para a forma que Guadagnino constrói “Depois da Caçada” esperando respostas. Elas não aparecerão. Sua intenção, como demonstra uma cena de diálogo envolvendo os três logo nos primeiros minutos, é puramente reconhecer o confronto de mundos e um debate sobre a própria moralidade.
Aliás, o cineasta se coloca em cheque também a todo momento. Até que ponto é possível acreditar completamente na pessoa que se diz vítima? Para causar ainda mais estranheza a esse jogo, o roteiro de Nora Garrett ainda coloca em confronto as expectativas de classe presentes aqui. Maggie é de uma família rica e com os pais sendo grandes doadores da universidade. Já Hank é um menino pobre, que ascendeu socialmente pelo estudo.
Talvez o grande centro gravitacional das discussões do filme se coloque em uma aula de Alma na qual ela destrinchar o conceito de poder no filósofo Michel Foucault. Esse que defende a ideia do poder ser uma força onipresente na sociedade, que irradia dos indivíduos. O poder, para ele, é algo sempre construído socialmente, o que irradia também para um debate sobre a ideia de gênero e classe social, ambas que se formam pelos meandros da sociedade.
Se tudo é construído, até que ponto o poder é um eco central nessas relações? O dinheiro, a importância acadêmica, a busca por sempre “se safar”. O que se sobrepõe a tudo? É parte dessas discussões que Alma se centra, uma figura a todo momento que se enxerga enquanto parte menor da história, porém que é levada para dentro dela.
Novamente, não espere respostas. Alma está, no fim das contas, em um grande debate moral ao longo de todo o filme. Afinal, ela é uma professora de filosofia. Exerce o poder enquanto sala de aula e intelectualmente – como demonstra uma cena com outros três alunos. Porém, simplesmente enquanto mulher, possui algum poder? Algum controle de algo?
Como dito anteriormente, o objetivo de Guadagnino é gerar uma provocação clara e evidente sobre as narrativas e os controles que as pessoas têm sobre elas. Até mesmo por isso, em uma trama que aborda violência sexual, utiliza todos os letreiros em referência direta ao cinema de Woody Allen, que foi acusado de abuso, mas teve o caso retirado na justiça pela falta de provas.
Ele brinca com essa resposta de quem assiste através também dos espelhos, reflexos da própria humanidade, e dos closes que sempre realiza no corpo. É como se deixasse evidente que “Depois da Caçada” está em busca de chegar dentro do ser, da mente, desses personagens. Aqui eles são colocados em cheque para o cancelamento e julgamento do público. Pouco importa a verdade, o que interessa mesmo é o espetáculo que sempre se cria disso, defende o cineasta.
Se isso gera momentos de grande compreensão de Alma, enquanto a figura principal dessa história, também retorna em um aspecto menos dramático, por assim dizer. Em alguns instantes, soa como se a direção buscasse apenas reforçar essa provocação por si só, como se fosse uma tese de doutorado, propriamente dita, o que torna um pouco vazio esse elemento.
Um momento bem definidor disso é uma cena próxima ao final com Alma e Hank em uma casa, que busca reforçar um aspecto já trabalhado pela encenação anteriormente, mas que quer ser apenas mais uma pedra para deixar o público tenso.

Com isso, se chega até o grande momento final. Nele, tudo retorna e os personagens precisam novamente lidar com quem eles são, no final das contas. A sequência brinca com um caminho tão idílico, que até mesmo causa dúvidas da sua própria veracidade. E o diretor faz questão de não deixar claro novamente.
Desse jeito, “Depois da Caçada” é bem evidentemente uma proposição apresentada por Luca Guadagnino enquanto alguém que quer observar esse choque de gerações. Como dito antes, até mesmo ele se coloca em cheque nisso e capaz de ser julgado, isso pelo simples fato de realizar o filme e de ser uma figura onipresente com a câmera dentro da história.
Porém, o grande debate sobre a moralidade sempre se impõe. É possível sair com a consciência limpa de ter feito algo errado? É possível ultrapassar os julgamentos da sociedade? Talvez o mais importante seja consigo mesmo. E olhar que tudo também faz parte de compreender a existência do outro dentro do espetáculo a qual chamamos de vida.
Nota: 4 /5