A “síndrome de pedigree” (e o que isso tem a ver com a Mikey Madison e a Fernanda Torres)
Eu estava pensando no que escrever para a minha newsletter no Substack, mas surgiu um tema importante relacionado ao cinema (e ao Oscar), então venho aqui na minha coluna no Cinem(ação) – mas aproveite para assinar minha newsletter mesmo assim, ok?
Vamos lá:
A gente sempre fala que o povo brasileiro tem síndrome de vira-lata: aquela ideia de que a gente se acha menor do que todos os países do mundo, como se o Brasil fosse uma pocilga e países como os Estragos Unidos, Portugal e Japão fossem o paraíso na terra. Na verdade, o primeiro não tem sistema de saúde pública, o segundo tem uma burocracia analógica, arcaica e demorada, e o terceiro é uma nação onde há preconceito pesado contra tatuagens. Ah, e em nenhum desses países existe pix.
Mas não é disso que venho falar.
Venho falar de um problema talvez mais grave que a síndrome de vira-lata. É a síndrome de pedigree. Foi o nome que eu criei (se alguém criou antes de mim, favor avisar) para aquelas pessoas que acham que seu país é especial, seu povo é maravilhoso e acima de todos os outros.
Vamos nos localizar no tempo e no debate:
Nos últimos tempos, o Brasil viveu uma enorme empolgação – merecida e positiva! – com a temporada de premiações e o sucesso do filme Ainda Estou Aqui, junto do enaltecimento do talento e carisma da atriz Fernanda Torres.
A excitação, o orgulho do Brasil e do cinema brasileiro são elementos importantes que devem perdurar por mais tempo e melhorar nossa relação com nosso país e nossa cultura. Até aí, só notícia boa.
Depois, vem o lado negativo do brasileiro, que lida com o país com a mesma toxicidade de um fandom de diva pop ou grupo coreano.
Por um lado, os brasileiros “da internet” mostraram que o engajamento nas redes sociais é avassalador, capaz de deixar o perfil da Academia de Hollywood com centenas de milhares de comentários. Por outro, houve quem ameaçasse derrubar o mesmo perfil caso “o Brasil perdesse o Oscar”. Eu não duvido que isso pudesse acontecer. Felizmente (e merecidamente), ganhamos o Oscar de Melhor Filme Internacional.
Aí vem a Mikey Madison:
Você já sabe, né: a Fernanda Torres não ganhou o Oscar de Melhor Atriz, e quem ganhou foi a Mikey Madison pelo filme Anora. Não sei se você viu, mas o artigo da Wikipedia em português sobre a atriz foi editado de forma a dizer que ela é uma “prostituta americana” em vez de “atriz” (algo já corrigido).
Não vou nem discorrer sobre a misoginia e o machismo presentes nos ataques de tanta gente à atriz: em vez disso, indico este artigo da Ieda Marcondes.
O fato é que boa parte dos ataques que a atriz e “o Oscar” (leia-se: as redes sociais da Academia) estão recebendo vem de brasileiros não apenas indignados com a “derrota” de Fernanda Torres, mas também se achando as últimas bolachinhas do pacote por serem brasileiros “superiores”, afinal de contas, COMO ASSIM A VANI NÃO GANHOU O OSCAR? ISSO É PORQUE VOCÊS NÃO ASSISTIRAM OS NORMAIS! (contém ironia)
Vamos à realidade: Fernanda NÃO tinha chances e o Oscar NÃO foi roubado
Eu quase tive um acesso de raiva quando li no Threads (por que eu fui abrir aquele app?) que “era pra ser a Fernanda ou a Demi e vocês roubaram para a Mikey Madison”.
Vamos aos fatos: ainda que Demi Moore tivesse boas chances, os prêmios recentes da Mikey e o crescimento de Anora na campanha da temporada indicavam que ela de fato estava no páreo, com chances de vitória. Fernanda Torres corria por fora, em “terceiro lugar” (segundo as projeções), com chances muito pequenas. Isso era uma UNANIMIDADE entre os especialistas que entendem de Oscar. Simples assim.
Repito: FERNANDA TORRES NÃO TINHA QUASE NENHUMA CHANCE DE GANHAR O OSCAR.
Além disso, ainda temos o histórico de 1999: na época, Fernanda Montenegro estava indicada na mesma categoria e a vencedora foi Gwyneth Paltrow, em uma campanha menos ética realizada pelo homem que mais tarde descobriríamos ser um monstro: Harvey Weinstein.
Mas, vamos ser sinceros: ao mesmo tempo em que a campanha “suja” da Miramax convenceu um monte de gente a votar na Gwyneth e no filme mediano Shakespeare Apaixonado, Fernanda Montenegro jamais ganharia uma estatueta com Cate Blanchett e Meryl Streep no páreo.
Dito isso, é preciso compreender de uma vez por todas: nenhuma das Fernandas teve seu Oscar “roubado”, e no caso de Mikey Madison, a premiação foi justa e baseada em um filme e atuação que tem seus méritos – a despeito do que cada um de nós prefira como gosto pessoal.
Por fim: a ilha Brasil é maravilhosa, mas não é superior a outras
Esses movimentos de brasileiros indignados e revoltados trazem à tona uma questão importante sobre nossa cultura: nós somos uma grande ilha que produz a própria cultura, com pouco intercâmbio com outros países.
E sim, eu sei que os países de língua portuguesa assistem nossas novelas, que muitos vizinhos hispânicos gostam de algumas músicas e outras manifestações artísticas, mas o fato é que o Brasil é bastante autocentrado em sua produção cultural. Por isso, ficamos felizes quando recebemos atenção de fora. A própria Fernanda Torres fez essa análise. É como se disséssemos: “olha que legal isso aqui que a gente tem”. É por isso que nós surtamos quando um monte de gringo se apaixona por Ainda Estou Aqui, e ficamos atordoados quando uma americana lê Memórias Póstumas de Brás Cubas e se apaixona por Machado de Assis no TikTok.
O grande problema é que isso esbarra em um problema que parece ser crônico entre os brasileiros: junto dessa empolgação e dessa dependência de validação externa, nos tornamos mimados. Queremos ganhar tudo e gritar enlouquecidamente (e desrespeitosamente) uma espécie de superioridade cultural que NÃO EXISTE (repita comigo: não existe superioridade cultural e nenhuma cultura é melhor do que a outra).
É aí que, paradoxalmente, nossa síndrome de vira-lata se torna uma síndrome de pedigree. Saímos do sentimento de que somos um país horrível para um orgulho exacerbado que beira o ufanismo.
Portanto, é melhor parar de atacar uma atriz que ganhou o Oscar e parar de achar que somos os alecrins dourados do mundo.
Ter orgulho da cultura brasileira não nos dá o aval para atacar instituições estrangeiras só porque achamos que eles não nos valorizaram. É isso que fazem os ex-namorados tóxicos e violentos.
Nós somos melhores do que isso.