Os Imperdoáveis: o que é um filme perfeito?
Dia 20 de outubro fui com a minha irmã assistir ao longa-metragem Os Imperdoáveis (Unforgiven) de Clint Eastwood, um dos meus filmes favoritos da vida e uma das obras-primas do meu cineasta favorito, numa exibição em 4K que ele recebeu no Cinusp, um cinema localizado na USP que eu visito com certa frequência, que é maravilhoso e altamente recomendável tendo uma curadoria, programação e um espaço de extrema qualidade. Descobrir e começar a frequentar o lugar fez com que eu acabasse construindo uma relação de afetividade e alegria com o local que se tornou bastante confortável para mim. E já que estamos falando em afetividade rever esse filme que eu já vi tantas outras vezes em tela grande foi algo muito especial. Poucas vezes os meus olhos brilharam tanto e tão intensamente assistindo algo numa tela de cinema. Poucas vezes a tela me sugou tanto para dentro dela de maneira tão poderosa com o que ela tem de tão belo e fascinante.
Num momento em que o Oscar parece ter virado uma pauta obrigatória do nosso cotidiano nesse ano de 2025, em 1992 Clint Eastwood era premiado nas categorias de melhor filme e melhor diretor por um longa–metragem que refletia um dos gêneros mais vitais para o cinema dos Estados Unidos, o cinema mundial e a própria história e imagem do seu autor que se tornou conhecido graças ao gênero e é um devoto fã dele. Os Imperdoáveis marca uma continuidade ao mesmo tempo que também acaba sendo uma reflexão de todos os faroestes que vieram até então na mesma medida, como se ele fosse uma somatória máxima de todos eles até então e como se todos culminassem nele. É um filme que fecha um olhar pro gênero que Eastwood estava construindo desde O Estranho Sem Nome (High Plains Drifter, 1973) e o estabelece de vez como um “autor” na indústria de Hollywood, já que até então ele só era visto dessa maneira na França e por uma minoria da crítica dos Estados Unidos, enquanto a maioria injustamente e absurdamente o viam como um astro que dirigia filmes sem grande valor.
Não tem como não ser hiperbólico e não falar que, se existirem cinco obras perfeitas já feitas no cinema, esse filme está estre elas. Um dos grandes auges que essa coisa chamada de sétima arte já atingiu em questão de encenação, compreensão e elevação do material que você tem em mãos, poesia, catarse, aplicação da linguagem, narrativa, visual e reflexão seja sobre o mundo, sobre a humanidade, o que temos de bom, de ruim, a violência, o funcionamento da sociedade, sua pátria e o resto do planeta que vai além disso, o próprio cinema e sua própria história. A arte num dos estados mais completos. O momento em que o discípulo supera os seus mestres ao falar dessa obsessão que persiste em toda a obra do Eastwood e que ele entende como ninguém: as luzes e sombras presentes de modo igual no mundo e no coração dos homens. É ao mesmo tempo o ponto final, o começo, a elevação de algo, um dos ápices e a culminação das fases de um projeto feito com paciência, esmero e inteligência.
Ele consegue oferecer tanto um olhar amargo e desconstruído para o faroeste com o ícone Clint Eastwood não consegue mais montar um cavalo, toma uma surra, é um péssimo fazendeiro, perdeu o traquejo com armas, ao invés de ser um vilão épico nos seus tempos de malfeitor era na realidade um assassino covarde e alcoólatra que matava mulheres, crianças, afins e maltratava animais, a sua figura no presente é um homem envelhecido, introspectivo, simpático, que desenvolve uma personalidade empática e bem intencionada mas ainda atormentada pelo passado que ele se envergonha, pelo vício (esse tipo muito semelhante de abordagem retornaria anos depois em Jurado Número 2 na figura muito mais negativa do personagem de Nicholas Hoult) e pela perda da esposa que ele é fiel até hoje, o vilão é um carpinteiro também fracassado, a violência é completamente seca, feia, por vezes prolongada e qualquer tipo de glamour é rejeitado o tempo inteiro, armas só levam a dor e a destruição, matar e morrer não são ações honrosas e grandiosas e sim coisas terríveis e devastadoras, a grande maioria dos personagens centrais são homens velhos que lidam com a percepção crepuscular do gênero, de onde estão e de quem são, o duelo final é caótico e melancólico, todos os personagens são absolutamente mundanos, humanos e falhos, o “herói” do filme (que de “herói” não tem nada e passa longe de qualquer idealização) é um antigo fora da lei verdadeiramente arrependido, mudado e reformado que retorna para a violência a contragosto pensando no melhor para a família ou para vingar a morte do amigo assassinado voltando momentaneamente pra um estágio próximo do seu passado e o vilão é o xerife da cidade, as cidades são sujas e precárias formadas por sociedades amorais e comuns, as figuras de poder são psicopatas desprezíveis, a simpatia está com as prostitutas e com aqueles que são marginalizados e abusados, a masculinidade é patética e destrutiva, o assassino de aluguel arrogante fodão é só mais um falastrão pomposo e violento facilmente espancando, as mitologias do faroestes escritas por W.W. Beauchamp são um bando de mentiras e contos de ego de homens violentos que vão passando de mão em mão só quebrados quando ele se depara com William Munny, o único desinteressado por essas fantasias de autoafirmação e livre desse desejo de ser seduzido por essa atenção glorifica, e por aí vai.
E ao mesmo tempo Eastwood mescla isso com um aspecto romântico clássico de apego ao gênero e ao seu passado que permanece no filme por alguém que tem pleno conhecimento do que está falando, amor por isso e que dá continuidade para isso na atenção pra paisagens robustas da natureza que cercam e enchem o quadro cinematográfico em planos gerais e abertos, uma grande profundidade de campo, os horizontes, as planícies, as jornadas de cavalo, os arquétipos todos continuam lá mesmo que muitas vezes tratados de modo diferente e momentos de catarse evidentes na vingança mesmo que eles fujam do épico ou do celebratório desses rompantes mas nem por isso deixem de ser entregues ao público e nem ignorados mesmo que um ar de tristeza sempre esteja dialogando com eles. Ou seja, é um filme que expande o olhar e a abordagem do seu gênero, mas não ignora ou ignora elementos que o tornam tão fascinante. Muito pelo contrário.
Como quase todos os filmes do Eastwood temos um filme de universos condenados, figuras amaldiçoadas, encontros e reencontros ao redor de dores, sentimentos contraditórios, memorias, traumas, o peso do passado e uma incerteza que permeia a eternidade se chocando com a mortalidade. Os já conhecidos jogos de luz e sombras do Eastwood acompanham as vivencias dos personagens, conversas do lado da fogueira, os momentos violentos, os tormentos e transformam Morgan Freeman e Clint Eastwood em silhuetas quando eles estão cavalgando, quando o Clint está enterrando a sua esposa no prologo ou de volta para casa no epilogo mas tudo isso é acompanhado das cores quentes do brilhante diretor de fotografia Jack N. Green para dar um peso a essa ambientação que os cercam e a esse aspecto sombrio do longa, que se torna ainda mais belo com a atração do fotografo pra esse impacto cristalino que encontra beleza imagética nesse universo escurecido. O som da chuva, do vento, de trovões ou dos animais consomem o espaço continuamente assim como o Clint nas sequencias de violências mostra o ponto de vista de diversas pessoas seguidamente observando esses mesmos horrores indo em cada uma delas.
É junto com Pontes de Madison o filme que o Clint Eastwood está no auge de tudo, mas principalmente na sua maior potência como encenador, levando ao máximo características sublimes dele como o ponto de vista de uma mesma cena mudar sutilmente mais de uma vez por meio de como ela é enquadrada enquanto vemos aquele mesmo evento, as aproximações de câmeras graduais em momentos de tensão e emoção em planos fechados nos rostos dos personagens, a câmera seguindo abaixada William Munny rastejando pelo saloon, as movimentações de câmera calmas e ultra pontuais ou o Clint no meio de tanta sobriedade e descrição precisa em como compor uma cena ainda consegue criar momentos bem intervencionistas de foco dividido ao registrar os personagens ou mostrando a chegada de William Munny na chuva por meio de uma câmera subjetiva, o que acaba marcando ainda mais as emoções latentes entre eles. Existem diversas composições magnificas no filme desde William e Schofield Kid na árvore, Delilah ouvindo William Munny em primeiro plano com ele estando em segundo plano ou ela encantada com ele e o céu refletindo no rosto da garota ou a partida de William Munny de Big Whisky e a gente se afastando do local também. Tudo é muito sóbrio e direto, mas sempre caprichoso, certeiro e imaginativo.
O controle de Eastwood em composição e decupagem permanece sempre num estado de fluidez absoluta e impacto na tensão graças a sintonia e confiança do trabalho de montagem do Joel Cox (também sempre brilhante). William Munny no bar é um espetáculo nesse sentido. Esses talentos tão especiais do Clint, como a exatidão da escalação dos atores, são ainda mais evidenciados numa reunião de personagens tão extravagantes e cheios de nuances. Os atores estão todos maravilhosos, mas o Gene Hackman é realmente algo quase sobrenatural de tão vigoroso e forte: seu Little Bill é um homem bonachão, capaz de ser muito afável, sorridente, falante, brincalhão, sarcástico e nessa persona social existe ao mesmo tempo um homem profundamente sádico, violento, cruel e autoritário. Hackman usa cada riso e cada sorriso para estabelecer a simpatia e o carisma superficial desse homem, sua postura, a sua seriedade e seu corpo indicam um sentimento de autoridade, mas com o tempo junto com o seu personagem na sua interpretação seus sorrisos e risadas se tornam mais maléficos, seu olhar ameaçador se torna ainda mais assustador e o seu semblante se mostra ainda mais violento e cheio de raiva revelando o verdadeiro monstro psicopata que ele é.
É um trabalho formidável de um ator formidável. Little Bill é um homem que introjetou nele mesmo o desejo de uma “vida tranquila” construindo a sua própria casa, mas isso é apenas um auto-engano e uma obrigação porque assim que a violência volta na sua vida ele se excita com ela como um tubarão ao ver o sangue, vibra e a exerce com prazer, perversidade e brutalidade mostrando como o seu papel de “protetor da cidade” é só uma demonstração de poder, uma afirmação de ego, um espaço de controle e uma forma de fazer um “status quo” injusto prevalecer. Ele é antítese perfeita para o estoico e arrependido William Munny, um homem de poucas palavras e levemente ríspido, porém doce, que verdadeiramente abandonou e rejeitou a violência extrema do seu passado só voltando para ela por necessidade e por testemunhar o ciclo de violência ao seu redor que ele coloca fim de vez após ter uma “recaída”. Enquanto o extrovertido e expressivo Little Bill se afastou do seu passado criminoso, mas agora em outras circunstanciais como um homem da lei continua praticando os seus velhos hábitos com enorme prazer, não sente nenhuma culpa disso e usa o seu cargo para abusar do poder e afirmar a sua posição.
O roteiro esplêndido do David Webb Peoples retrabalhado e lapidado por anos pelo Clint Eastwood investiga um estado psicológico muito complexo por trás desses personagens pitorescos e inicialmente arquetípicos que o filme segue usando diálogos que por vezes são brincadeiras debochadas ou reflexões latentes sobre a existência dessas figuras dentro de uma energia literária buscada por Eastwood e Peoples, que tem uma queda por uma verborragia mais extravagante e empostada na sua coloquialidade que se alinha bem com a secura e sisudez do existencialismo de Clint muito interessado sempre pelos momentos profanos dessas trocas de frases. Existem vários acertos dramatúrgicos de todos os tamanhos no filme como a construção de Little Bill desprezando os apelos por justiça de Strawberry Alice após Delilah ser desfigurada no começo do filme enquanto ele só consegue ver as prostituas como moedas de troca e mercadoria (diferente de Munny, o único no filme que as vê diferentes de pedaços de carne ou coisas), mas quando o xerife ditador está no seu confronto final com o personagem de Clint Eastwood assim como a personagem de Frances Fisher ele enfatiza que aquilo “não é justo”.
Ao mesmo tempo, uma rima textual, o vislumbre da hipocrisia do personagem de Hackman e um destino cármico. Ou quando William Munny manda o escritor pegar um revólver, a mesma coisa que Little Bill o ordenou numa das melhores cenas do filme. No meio de tudo isso, idiossincrasias particulares vivem invadindo os personagens dos filmes em diálogos e conversas, tipos mais afetados e tipos mais melancólicos ou introspectivos vão se misturando e até trocando de lugar conforme o filme vai passando, mas cada conversa que serve para avançar a trama e a história sempre contém um vislumbre sobre as vivencias e características pessoais e locais daqueles personagens. Assim como toda cena dentro dessa estrutura perfeita formatada pelo Peoples é importante para dar uma progressão orgânica para a narrativa, mas também marca e desenvolve em ações aspectos da psique dos personagens, as reflexões temáticas que povoam o filme e a sensibilidade do Clint em perceber lados humanos em figuras que se transformam conforme a narrativa como o Kid e a Delilah. A suavidade, melancolia e delicadeza do olhar de Eastwood na narrativa e na encenação é a mesma que aparece na composição no violão da música Claudia’s Theme, que ele faz para o filme.