Ainda Estamos Aqui: o despertar dos brasileiros através do cinema - Cinem(ação): filmes, podcasts, críticas e tudo sobre cinema
Artigo

Ainda Estamos Aqui: o despertar dos brasileiros através do cinema

O ano era 2016 quando Bolsonaro celebrou, em plena Câmara dos Deputados, cheio de vigor e saudosismo, a memória do coronel Brilhante Ustra, notório torturador durante a ditadura militar brasileira. O fato, ocorrido na votação do impeachment de Dilma Rousseff (torturada pelo coronel quando presa durante o regime militar), marca, pelo menos para mim, o início de uma tragédia que só pode acontecer quando um país não cicatriza uma ferida aberta e, assim, permite que o borrão da memória coletiva se perpetue, dando azo ao retorno de um golpe de Estado. Desde que nós, enquanto país, permitimos coletivamente que se passasse uma borracha sobre uma tragédia escrita em nossa história à caneta, é como se tivéssemos assinado nosso destino de volta à ditadura.

Em 2018, o que parecia uma realidade distante tornou-se verdade: trinta anos após a reconquista da democracia, as pessoas foram às ruas pedir por intervenção militar. O que custou suor e lágrimas de um Brasil inteiro, de repente, parecia irrelevante. A narrativa de que poderíamos nos tornar uma Venezuela, de que estávamos à beira da imposição de uma “ideologia de gênero” nas escolas e de que a religião cristã estava ameaçada — todas alucinações coletivas perpetuadas por notícias falsas patrocinadas — parecia real, e milhares de pessoas por todo o Brasil imploravam pela volta dos militares ao governo, como um último recurso antes da completa barbárie.

As ameaças funcionaram, e a sociedade escolheu para presidente alguém que não apenas homenageou publicamente um torturador, mas que também era ex-militar, defensor de um regime ditatorial e negacionista de “tudo que tá aí” — especialmente se incluísse civilidade, direitos humanos e, claro, a Comissão da Verdade. Uma das primeiras medidas do governo bolsonarista foi apagar, por completo, tudo que pudesse haver contra a ditadura militar brasileira e a classe militar como um todo. Com um vice-presidente também militar, o então presidente do país fez de tudo para que o golpe não fosse lembrado como golpe e para que os torturadores não fossem reconhecidos pelo que foram: torturadores.

Nosso país passou a sofrer de uma espécie de perda de memória recente, como uma febre a nos assolar, convidando-nos a acreditar em uma realidade paralela, envolta por desinformação, ódio e medo. Afinal, se não temos memória e estamos aterrorizados o tempo inteiro, podem nos contar qualquer coisa que ajude a reescrever o passado a bel-prazer — e acreditamos nisso. Foi o que aconteceu. De 2018 a 2022, vivemos em uma realidade paralela, sequestrados pela amnésia de um governo complacente com a crueldade, o autoritarismo, a negligência e o próprio ego. Só não imaginávamos que estávamos tão perto de outro golpe de Estado, outro golpe militar, que envolvia matar Lula e Alckmin, planejar um estado de sítio e conduzir o país pelos próximos não sabemos quantos anos.

Nesse cenário, Ainda Estou Aqui é, de fato, um fruto do retorno da democracia no Brasil, como disse Walter Salles em entrevista à CNN. O filme, que já reuniu mais de cinco milhões de espectadores apenas no país, tem desempenhado um papel fundamental na nossa memória coletiva. Desde sua estreia, parece ter funcionado como um meio de despertar de um estado de transe. De lá para cá, houve movimentações significativas no Judiciário, no Legislativo e no Executivo brasileiros, a começar pela resolução do Conselho Nacional de Justiça no sentido de retificar as certidões de óbito dos desaparecidos políticos da ditadura militar para “morte violenta causada pelo Estado”. A certidão de Rubens Paiva, já alterada, foi uma das primeiras mudanças repercutidas na mídia, provocadas pelo filme.

Além disso, após mais de 50 anos batalhando na Justiça, a viúva de Vladimir Herzog teve seu direito à pensão vitalícia reconhecido em decisão recente da Justiça Federal — ainda passível de recurso, mas, sem dúvidas, um reconhecimento significativo impulsionado pela repercussão do filme. Na mesma esteira, o STF formou maioria para revisar a Lei da Anistia em relação aos crimes cometidos durante a ditadura militar, o presidente Lula criou o Prêmio Eunice Paiva em defesa da democracia, e a morte de JK voltou a ser investigada sob suspeita de atentado político, já que novas movimentações no processo apontam para a possibilidade de o ex-presidente ter sido alvo dos militares após se opor publicamente ao regime.

Costumo dizer que acho uma grande balela essa ideia de “filme importante”, pois ela tende a cair em uma visão reducionista e utilitarista da arte. É uma adjetivação escorregadia, cujas interpretações podem facilmente resultar em análises superficiais, sobrepondo a importância temática à linguagem. Acredito que não devemos perceber a arte como um meio para atingir determinado fim, tampouco vê-la sob um viés educacional. Porém, neste caso, a adjetivação se justifica quando toda uma nação desperta no mesmo olhar de Fernanda Montenegro ao observar a imagem pálida, em preto e branco, de Rubens Paiva na televisão. O despertar de um país que estava adormecido diante de mais uma tentativa de golpe de Estado é, sim, importante. Não há outra palavra para isso.

Escrevo este texto em 16 de fevereiro, a dois dias do encerramento dos votos do Oscar. Estamos concorrendo em três categorias, incluindo a principal, contra tudo e todos: um filme falado em português, com o menor orçamento entre seus concorrentes, um elenco inteiro posicionado abaixo da linha do Equador e uma série de outros empecilhos que nos colocam em uma posição desafiadora desde o início. Ainda estamos aqui. Não vejo qualquer absurdo nesse filme saindo vitorioso em mais de uma categoria; vejo ineditismo, apenas. Tudo o que o cerca — da comoção ao reconhecimento — está interconectado em um mundo cada vez mais polarizado e carente de memória.

De todo modo, com ou sem prêmios internacionais, o maior êxito de Ainda Estou Aqui tem sido justamente no Brasil, entre os nossos, ao conquistar a atenção dos brasileiros para algo que não ficou apenas no passado. Ainda está aqui, entre nós, à espera de uma oportunidade para desestabilizar nossa tão suada democracia. O filme chega em um momento em que a necessidade de rememorar se faz urgente, pois é o que nos impede de repetir os mesmos erros. A ditadura foi uma realidade que jamais devemos aceitar novamente. Minha única esperança é que nossa perda de memória não nos acometa outra vez quando chegarmos às urnas em outubro de 2026.

Deixe seu comentário