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Cinema Mundial

Crítica: Cidade; Campo

Ficha técnica – Cidade; Campo
Direção: Juliana Rojas
Roteiro: Juliana Rojas
Nacionalidade e Lançamento: Brasil, 2024
Elenco: Fernanda Vianna, Mirella Façanha, Bruna Linzmeyer, Kalleb Oliveira, Andrea Marquee, Preta Ferreira.
Sinopse: Duas histórias de migração, memórias e fantasmas. Após um desastre inundar sua terra, Joana foge para São Paulo e tenta recomeçar sua vida. Enquanto isso, após a morte de seu pai, Flávia se muda para a fazenda dele com sua esposa Mara.

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É muito “lugar comum” começar um texto sobre um filme nacional dizendo que se trata de “um retrato do Brasil”. Na verdade todo filme é fruto de seu espaço e de seu tempo. Todo filme retrata aspectos do contexto em que se insere e no qual foi produzido. Com “Cidade; Campo” não é diferente. Aqui, talvez esse aspecto documental de fato fique aparentemente mais latente, pelo próprio escopo que a diretora Juliana Rojas propõe. Um longa dividido em dois capítulos, que revelam duas faces de uma mesma moeda. No primeiro, uma mulher do campo precisa migrar para a cidade grande para recomeçar a sua vida devido a um desastre ambiental que inundou o lugar onde morava. No segundo, um casal de mulheres da cidade se propõe a migrar para o campo para recomeçar a vida após a morte do pai de uma delas, que deixou como herança uma pequena fazenda no interior. Através desses movimentos temos acesso a uma série de questões que permeiam o contexto brasileiro nesses dois cenários.

Mas questões como a “uberização” do trabalho nas cidades ou a monocultura da soja em grandes latifúndios e o assédio a pequenos produtores da agricultura familiar no campo ficam em segundo plano na construção narrativa de Rojas. São tratados inclusive de maneira bem superficial e até nocivamente simplista em alguns casos. “Cidade; Campo” com certeza não é um filme sobre essas problemáticas, nem tem a pretensão de construir um pensamento complexo sobre as questões que permeiam as relações de trabalho na cidade e no campo. O olhar da diretora está muito mais voltado para as suas personagens e em como esses contextos espaciais influenciam nas relações entre elas.

É a conexão entre as pessoas do filme que possibilita a adaptação das protagonistas a esses contextos tão diferentes dos quais estavam habituadas. No caso de Joana (Fernanda Vianna), protagonista da primeira crônica, é o estabelecimento de uma rede de afetos que torna habitável o ambiente urbano, tão hostil e solitário à primeira vista. O cuidado que falta na análise das questões sócio/econômicas que permeiam o filme, sobra no retrato das relações entre a protagonista e seus familiares. É tocante observar esses laços se formando e se consolidando, uma família se rearranjando após uma tragédia que deixou traumas. Nesse ponto, vale destacar a química imensa entre Vianna e o talentosíssimo jovem Kalleb Oliveira, que interpreta Jaime. As interações entre os dois atores/personagens nos oferecem alguns dos melhores momentos do longa. Um acalanto diante da atmosfera opressiva da cidade, reforçado por uma fácil identificação para com o espectador. A configuração e os dilemas dessa família são tão tipicamente brasileiros que somos rapidamente sugados, envolvidos emocionalmente, como se estivéssemos observando a vida de parentes nossos. Um fenômeno parecido com o que aconteceu no “Marte Um” (2023) de Gabriel Martins recentemente.

Mas Juliana Rojas sempre salpica em suas obras pitadas generosas de fantasia, principalmente através da linguagem do terror e do cinema musical. Em “Cidade; Campo” isso não é diferente. O terror em “Cidade” vem principalmente associado ao trauma vivido pela protagonista por conta do desastre ambiental que a deixou desabrigada. Mas diferente da prática que vemos acontecer com frequência nesse tipo de associação entre traumas e terror no cinema contemporâneo “avintequatresco”, aqui não há a necessidade de muitas amarrações metafóricas. São pequenos momentos em que elementos estranhos invadem a narrativa e atormentam a personagem. O filme não se preocupa em explicá-los ou justificá-los, eles apenas estão ali, existindo como possibilidades do mundo construído pela diretora, sejam eles vozes, visões ou até um tocante número musical que faz referência ao cavalo que a protagonista possuía em sua casa no interior de Minas Gerais.

Em outros casos, essa invasão da fantasia acontece nos apartamentos nos quais Joana vai fazer faxina, sempre em um tom tenso, como se algo de errado estivesse para acontecer. São ambientes vazios e misteriosos. Ela nunca encontra seus contratantes, apenas fragmentos de suas histórias, através de objetos pessoais, fotos e da própria mobília. Essas incursões ao terror ilustram bem a posição de vulnerabilidade na qual aquelas mulheres que sobrevivem das “faxinas por aplicativo” se encontram, entrando sozinhas nesses espaços, sem qualquer proteção. Mais uma vez, nesse caso, surgem as conexões entre elas para oferecer algum alento. O filme chega até a flertar com uma ideia sindical, mas isso, mais uma vez, não é aprofundado.

No segundo conto o movimento é inverso. Mais longo e irregular do que o primeiro, “Campo” gira em torno não de uma única mulher, mas sim de um casal, composto por Flávia (Mirella Façanha) e Mara (Bruna Linzmeyer). Mais uma vez os dilemas sócio/econômicos do interior do Brasil aparecem apenas como pano de fundo, mas o verdadeiro foco é a intimidade das personagens e a forma com a qual vão se adaptando a esse novo ambiente. Aqui, a protagonista é Flávia, que volta ao interior para cuidar da fazenda do pai que acabara de falecer, depois de anos de pouco contato, em busca de uma vida menos ansiosa. Rapidamente ela descobre que o campo também possui suas complexidades e que essa aparente simplicidade que a vida lá oferece não exatamente se efetiva na realidade.

A primeira relação que salta aos olhos é a parceria entre as duas mulheres, ilustrada com muita sensibilidade por Rojas. Em tempos quando a nudez e o erotismo no cinema vêm sendo tratados necessariamente como vilões despropositados, como simples elementos de exploração da imagem e dos corpos femininos, essas três mulheres – Rojas e as duas atrizes – constroem uma longa e bonita cena em que esses elementos estão presentes. Com cuidado e através de um olhar que é sim sensual, mas nunca exploratório, todo esse afeto, companheirismo e tesão das personagens uma na outra são materializados. Uma escolha que vai na contramão do que o moralismo barato que se vê aí pela internet tem pregado, mas que oferece uma prova de que esse tipo de recurso narrativo pode sim ser utilizado com bom gosto.

Mas o campo também possui mistérios que oferecem uma rica gama de possibilidades para uma intrusão da fantasia e a porta de entrada para essa dimensão sobrenatural se dá através do esoterismo. É até uma virada abrupta que acontece e acaba não se justificando em termos causais. O roteiro não deixa claro o que dá errado para que a relação entre as personagens se deteriore rapidamente e parece atribuir esse fato à experiência que ambas tiveram ao consumir o chá de ayahuasca oferecido por uma amiga do falecido pai de Flávia que aparece em dado momento. Enquanto a protagonista tem ali a experiência esperada, sua companheira entra em uma espécie de “bad trip” e acaba se perdendo em meio à mata para aparecer sozinha, bastante abalada, na manhã seguinte. A partir daí as coisas dão errado. Animais começam a morrer, o solo se torna infértil e Mara segue em um estado alterado, que rende uma divertida performance de dança de Linzmeyer ao som de Nicolas Jaar e culmina com a personagem resolvendo ir embora, já que, de acordo com ela, só existe morte naquele lugar.

Com a mesma velocidade em que as coisas dão errado, elas também chegam a uma resolução. Se não fica claro o que desestrutura o ambiente, o remédio que parece colocar as coisas no lugar é uma reconciliação de Flávia com a sua ancestralidade. A descoberta da presença espiritual de sua avó como uma espécie de guardiã daquele espaço, acaba trazendo um final bonito para a confusa segunda parte do longa, mais uma vez ressaltando as relações de afeto – mesmo que dessa vez intermediadas por um elemento metafísico – como apaziguadoras dos conflitos. Esses afetos é que possibilitam de novo a adaptação da personagem a esse ambiente estranho, que possui as suas próprias regras e o retorno de sua companheira no fim das contas.

“Cidade; Campo” não se propõe a ser um retrato do Brasil em um sentido mais amplo, não faz questão nenhuma de traçar um panorama objetivo dos problemas desses dois ambientes em que se passa. Mas em um sentido íntimo, pode se dizer sim que há um olhar preciso para uma das características mais bonitas do nosso país: as pessoas. Como elas se adaptam, se ajudam, se acolhem, mesmo em situações adversas, seja qual espaço elas ocupem – no mundo físico ou no espiritual – na cidade ou no campo.

  • Nota
3.5

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