Crítica: Pisque Duas Vezes
Ficha técnica – Pisque Duas Vezes
Direção: Zoë Kravitz
Roteiro: Zoë Kravitz, E. T. Feigenbaum
Nacionalidade e Lançamento: Estados Unidos, México, 2024
Elenco: Naomi Ackie, Channing Tatum, Alia Shawkat, Christian Slater, Simon Rex, Adria Arjona, Haley Joel Osment.
Sinopse: Quando o bilionário da área de tecnologia Slater King conhece a garçonete Frida em sua festa de gala para arrecadar fundos, ele a convida para se juntar a ele e seus amigos em férias de sonho em sua ilha particular..
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Ninguém pode negar que o ato de lembrar é exatamente aquilo que nos impede de repetir os mesmos erros. Lembrar é um mecanismo de aprendizado, enquanto esquecer é, normalmente, um mecanismo de defesa. Quando crianças, aprendemos a traçar limites, por exemplo, através daquilo que lembramos sobre nossas experiências, nem que isso signifique que para fixar o aprendizado precisamos repetir o mesmo ato inúmeras vezes. Por outro lado, também estamos fadados a nos esquecer daquilo que nos traumatizou ou nos envergonhou. Existem situações em que não conseguimos nos lembrar detalhadamente pois é de interesse do nosso cérebro que nos defendamos do incômodo que nos gera.
Nesse sentido, “Pisque Duas Vezes”, estreia de Zoe Kravitz na direção, é um filme sobre trauma cujos espectros, entre o lembrar e o esquecer, se encontram em conflito. Se por um lado a protagonista deseja esquecer todos os seus traumas, afirmando textualmente que seria capaz de pagar alguém para esquecer, por outro eventualmente chega à conclusão de que só é possível superar um padrão, especialmente de violência, quando consegue lembrar. É apenas quando Frida (curiosa escolha de nome, por sinal) decide olhar por debaixo do véu da perfeição que ela retoma o controle da própria narrativa e vira The Boss de sua própria história (em referência a música de James Brown de mesmo título que toca ao final).
Visualmente, Kravitz espelha a confusão mental de Frida através da forte saturação de cores, estabelecendo uma ambiência artificial que vai da fotografia à direção de arte e curiosas escolhas escolhas de ângulos, muitos primeiríssimos planos que irão explorar a psique dessa protagonista em um cenário onde nada é o que parece. É interessante pensar como essa confusão é estabelecida, também, através das referências de cinema que a diretora disse ter, começando pelo cinema de Roman Polanski e passando pelos simbolismos que ela irá usar como parte da construção do cenário de manipulação ali existente, como quando referencia Matrix (1999).
Notei muitas semelhanças, de fato, com a forma como Polanski trabalha as dimensões psicológicas de seus personagens, seja em Repulsa Ao Sexo (1965) ou O Bebê de Rosemary (1968), especialmente este útlimo. Normalmente, concordo que seria esquisito que um filme com uma mensagem feminista tão latente como “Pisque Duas Vezes” tenha como referência um abusador sexual convicto, mas a verdade é que eu passei a notar a alegação de Kravitz como uma forma legítima e muito inteligente de subversão.
Creio que utilizar uma referência como essa para fazer um filme que tem uma mensagem de empoderamento tão forte, além de um comentário ácido sobre os tais “cancelamentos” e os questionáveis “perdões públicos” é, em si, um ato subversivo. É uma forma de utilizar a boa arte de uma má pessoa para refletir sobre a ironia presente nisso tudo, inclusive por meio de uma interessante metalinguagem. Já em Matrix (1999), vejo o uso de várias das suas mais interessantes referências, como quando Frida e Jess escolhem suas cores de vestido, momentos antes de conhecer o famoso Slater King ou quando o “coelho vermelho” é citado por uma mulher com uma enorme tatuagem de cobra.
Frida escolhe a cor vermelha como a cor do seu vestido, inconscientemente talvez desejando sair daquela experiência com a verdade. O “coelho vermelho” em alusão ao coelho branco pode ser compreendido, dentro da trama, como o caminho que desencadeia a verdade enquanto a tatuagem da cobra, sendo o veneno desta a única forma capaz de acordar as mulheres da realidade, a então saída dessa espécie de Matrix, dessa ilha. Claro que aqui essas simbologias funcionam em uma dimensão muito mais interpretativa que qualquer outra coisa, mas levando em consideração que estamos falando de um desejo mesmo que inconsciente de sair de uma realidade cujas aparências enganam, se torna apropriado perceber Frida como nosso Neo.
O roteiro em si não pretende reinventar a roda, muitos irão perceber suas semelhanças com filmes mais recentes como Corra! (2017), Bela Vingança (2020) ou Knives Out e Glass Onion (2022), talvez até mesmo com The White Lotus (2021), no entanto, nada da sua previsibilidade retira do filme a sua personalidade, especialmente por conta da consciência que sua autora parece ter das suas limitações e até mesmo nas convenções de um filme do gênero.
Em suma, o que Kravitz oferece é um vislumbre de possibilidade de autoria e inventividade, inclusive no uso clássico do horror e suas possibilidades cinematográficas, diante de um tema que hoje em dia corre o risco de cair, senão na mesmice, no excesso de obviedade. Ela chega, sim, a escorregar neste último em alguns momentos e a escolha de casting de Channing Tatum não me parece ter sido a melhor, no entanto o saldo é ainda positivo. É bom ver uma diretora que coloque um filme como esse nos holofotes, não apenas pelo tema que aborda, mas pela forma como é abordado, que no final das contas é o que mais importa.