Crítica: Anora - Festival de Cannes 2024 - Cinem(ação): filmes, podcasts, críticas e tudo sobre cinema
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Crítica: Anora – Festival de Cannes 2024

Anora – Ficha técnica:
Direção: Sean Baker
Roteiro: Sean Baker
Nacionalidade e Lançamento: Estados Unidos, 2024 (Festival de Cannes)
Sinopse: Anora é a comédia sobre uma trabalhadora do sexo de Las Vegas filmada no interior do estado de Nova York e em Las Vegas.
Elenco: Mikey Madison, Yura Borisov, Mark Eidelshtein, Aleksey Serebryakov, Darya Ekamasova, Lindsey Normington, Ivy Wolk, Karren Karagulian.

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No início da minha vida cinéfila, quando os sites de filmes on-line e downloads eram a regra ao invés de grandes plataformas de streaming, me deparei com um pequeno filme cujo marketing girava em torno de ter sido filmado com uma câmera de iPhone 5s, a última geração produzida pela Apple naquele ano. “Tangerine” (2015) era um filme de comédia nos Estados Unidos contemporâneo filmado nas ruas de Los Angeles, mas sem sinal algum do glamour habitual que a cidade exala em outros filmes. Sua trama acompanha uma prostituta e sua melhor amiga e todo o filme se passa em apenas um dia, em um roteiro baseado em pequenos episódios que funcionam como ótimas esquetes.

Quase de imediato o humor e o estilo de Tangerine me ganharam. À exceção de poucas cenas cuja intenção de transparecer uma imagem de celular é clara, era quase impossível apontar que o filme havia sido feito a partir de um dispositivo tão amador. Ainda que sua produção envolvesse lentes profissionais acopladas à câmera e um tratamento de cor posterior evidente, ainda assim as imagens captadas vinham de um iPhone 5s, o que me fez crer, pela primeira vez, que o futuro do cinema na era digital havia chegado – tanto no cinema independente norte-americano, quanto a nível mundial.

Sean Baker provou que era possível construir um filme interessante, dinâmico e de fato, cinematográfico, a partir de um dispositivo que estava no alcance das mãos da maioria das pessoas naquele momento. Desde então, o diretor se tornou um dos grandes nomes da nova geração de cineastas norte-americanos, consagrando-se ainda mais após “Projeto Flórida” (2017), um filme de realismo social que critica de forma ferrenha a ilusão do sonho americano e no qual os tons pastéis e lúdicos são contraste para a vida difícil levada por uma jovem mãe solo.

Menos de dez anos desde “Projeto Flórida” se passaram e o Festival de Cannes, através do júri presidido por Greta Gerwig, consagrou Sean Baker e seu mais novo longa “Anora” como os vencedores da Palma de Ouro de 2024. Concorrendo com nomes como Francis Ford Coppola, David Cronenberg, Andrea Arnold, Jia Zhang-ke e Miguel Gomes, Baker comoveu não apenas o júri como uma plateia gigantesca em sua estreia no Grand Théâtre Lumière (incluindo a mim) com sua comédia romântica às avessas sobre uma prostituta que seu trabalho em uma boate noturna para casar com um jovem e inconsequente herdeiro russo.

Em uma sociedade cada vez mais fissurada em redes sociais, com fácil acesso a pornografia e estilos de vida que jamais serão alcançados, Baker reúne o clássico e o moderno em sua forma de fazer cinema e falar sobre a vida em sociedade – especialmente de pessoas jovens. Seu estilo em “Anora” envolve resgatar a veia de trabalhos anteriores, mas também da história do próprio cinema. Como “Tangerine”, “Anora” também é um filme cuja trama é majoritariamente constituída através de uma narrativa episódica, com esquetes que exploram situações cômicas e absurdas, típicas das comédias screwball do cinema clássico Hollywoodiano (de Billy Wilder a Ernst Lubitsch).

Por outro lado, o filme também tece uma crítica ferrenha e muito contemporânea em seu realismo social ao ideal do “american dream”, aproximando-se por esse viés da ideia central de “Projeto Flórida”, ao ilustrar por meio de cores vibrantes e incríveis wide shots (uma de suas marcas registradas) o que parece ser a concretização desse sonho de ascensão social, só para depois exibir o contraste da baixa saturação da realidade ordinária, diluindo os sonhos da protagonista e do espectador a pó.

Dessa maneira, “Anora” pode até ser percebido em sua semelhança com  “Uma Linda Mulher”, por exemplo, mas sabe transformar essa história não em versão de fábula hollywoodiana, como o filme da década de 90 acaba por fazer, ou em uma simples exploração satírica per si como vários filmes da comédia do absurdismo, mas sim em uma narrativa de empoderamento feminino na condensada na imagem de Anora (Mickey Madison) ao mesmo tempo que sabe expor a fragilidade e vulnerabilidade desta personagem, em um mundo onde mulheres e seus sentimentos podem ser facilmente descartados, ainda mais se vistas como objetos sexuais, de pouco valor.

Dentro da lógica neoliberal, a dinâmica dos personagens no filme reflete o poder que estes detêm em sociedade, onde o valor humano está diretamente associado com os bens que o indivíduo possui. Em suma, a obra nos dá a chance de sonhar com a ascensão social e a valorização dessa personagem enquanto ser humano, mas no fim das contas não passa de uma fábula cuja “lição de moral” – se é que podemos perceber assim – é chamar atenção à existência de castas no capitalismo e sua inamovibilidade. No fim, o amor acaba florescendo dentro da própria classe trabalhadora – e, no filme, até marginal.

Já em um prisma mais feminista de análise, “Anora” também reflete as consequências do tratamento dado a essas mulheres que não se veem dignas de amor e demoram muito, às vezes uma vida inteira, para perceber valor em si mesmas. O desfecho que Sean Baker escolhe para sua protagonista é arrasador. Como espectadores, a cena final é um nocaute onde tamanho sofrimento interno, fruto de uma violência diária, nos é apresentado na forma de um trauma que, como todos, carrega uma marca.

Em um júri presidido por uma diretora norte-americana, “cria” do cinema independente dos EUA, nada mais esperado que premiar um colega com o qual não apenas divide o espaço na indústria e ideias semelhantes, como talento. Premiar um filme tão forte política e socialmente, contemporâneo e rico em referências e construções imagéticas, é nada menos que justo. “Anora” pode não ter sido meu favorito à Palma de Ouro, mas estava bem próximo. Foi a melhor experiência em uma sessão durante todo o Festival. As pessoas riam alto, gritavam, torciam e, por fim, choravam.

Esse é o tipo de experiência que nos lembra o porquê do cinema enquanto espaço deve continuar vivo. Em prol da experiência coletiva e transcendental que existe em compartilhar o mesmo universo durante algumas horas com quem você jamais viu antes ou jamais verá novamente, o cinema em sua melhor e principal forma para, jamais, esquecer.

  • Nota
4.5

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