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Crítica: Todos Nós Desconhecidos

Todos Nós Desconhecidos – Ficha técnica:
Direção: Andrew Haigh
Roteiro: Andrew Haigh, Taichi Yamada
Nacionalidade e Lançamento: Reino Unido, 2024
Sinopse: Um roteirista, atraído de volta à sua casa de infância, inicia um relacionamento incipiente com um vizinho misterioso e descobre que seus pais parecem estar vivendo exatamente como no dia em que morreram, 30 anos antes.
Elenco: Andrew Scott, Paul Mescal, Carter John Grout, Jamie Bell, Claire Foy.

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Misturando visões do passado com a fantasmagoria, Todos Nós Desconhecidos aposta numa atmosfera densa para debater a solidão, a ausência de afetos que podem estruturar o sujeito e a força possível do amparo para que a sexualidade e outros aspectos da projeção humana no mundo sejam viáveis. No papel principal, Andrew Scott é Adam, um escritor solitário e aparentemente depressivo, que ao resgatar fotos da infância, emerge num retorno ao passado para vivenciar momentos com os pais que faleceram quando ele era criança. Nessa jornada, como um amparo possível, Paul Mescal é Harry, vizinho de Adam num prédio solitário nos arredores de Londres. Esse amor encontrado, real ou não, será o fio do retorno para a vida.

Escrito e dirigido pelo britânico Andrew Haigh, o novo longa do diretor é uma adaptação do livro Strangers, do escritor japonês Taichi Yamada. Todos Nós Desconhecidos é um drama queer muito competente e sensível que transita entre uma viagem de memórias, afetos e traumas de um gay adulto de classe média que se vê perdido e solitário buscando um amparo naquilo que faltou e seria essencial para que a vida fosse diferente. Trabalhar com memórias no cinema não é simples, sempre que esse recurso é utilizado parece ser de forma preguiçosa, já que geralmente são feitos em flashbacks expositivos. Haigh escolhe um caminho um pouco mais difícil, que por vários momentos passa a sensação de um drama de terror com fantasmas, numa brincadeira de corda bamba entre pulsão de vida e pulsão de morte.

A solidão do homem gay não é novidade no cinema, nem na vida real – estamos acostumados com essas histórias. O amor para nascer, precisa estar disposto a uma viagem sem freios rumo a um abismo sem muitas garantias. Quanto mais desamparados estamos, mais complicada é essa abertura. Adam é recorrentemente assombrado por seus fantasmas do passado, assim como Harry, que já conhece Adam numa situação bem mais delicada. A dança erótica que domina os primeiros trinta minutos de filme, logo é substituída por uma avalanche de tentativas de elaboração e reescrita de uma vida de afetos interrompida. Por vários momentos, o filme nos provoca com a sensação de algo fantasmagórico no ar, seja pela escolha da iluminação sempre crepuscular, seja pela ausência de cores fortes quando momentos afetivos acontecem. As cores lavadas em várias cenas, parecem ocasionalmente nos lembrar de que algo naquelas recordações ou vivencias no outro mundo, não estão em acordo com a possibilidade do real; sempre a um trem de distância, sempre ausentes de vida.

Trens ou metrôs são recursos clichês usados de várias formas na contação de histórias, sempre nos levando para um túnel de tempo ou para um afunilamento de conflitos muito próximos. É assim que Adam entra nesse mundo paralelo das memórias, e por consequência em si mesmo, para encontrar respostas ou a ressignificação do seu passado. Encontrar os pais, que Claire Foy e Jamie Bell compõe brilhantemente, transmite a angústia de terem sido barrados de ver o filho crescer e de não ter encontrado o amparo dos pais mais adiante. Há sempre um arrependimento no ar, não o arrependimento por ter feito, mas por não ter feito, um vazio impossível de ser capturado. Assim como os trens podem representar a passagem de tempo e de universos, também os fantasmas são instrumentos simbólicos, as vezes usados para o simples assombro na tentativa de recuperar algo que não é possível, as vezes para representar nossos maiores medos a partir dos nossos semelhantes.

A depressão como sintoma e as memórias traumáticas, podem ser um impulso do Id que retorna incessantemente, formando um nó que traduzimos em angústia e que pode paralisar a vida, impedindo possibilidades de elaboração. Adam parece, a todo custo, tentar fazer a elaboração desde a morte dos pais. Muito desse peso carregado pelo personagem se deve a Andrew Scott numa performance magnífica, assim como Paul Mescal, que transmite o suspiro angustiante de uma vida que não encontra saída numa brilhante interpretação. Um destaque interessante é a direção de atores excepcional conduzida por Andrew Haigh, que consegue inspiração e apelo dramático das interpretações que tem em tela. Boa parte do sucesso de Todos Nós Desconhecidos se dá pela atuação do quarteto principal que está impecável.

Andrew Haigh, com exceção da condução dos atores, não é um diretor inovador. Sua cinematografia e composição de cena são bem eficientes na maioria das vezes, sem grandes movimentos ou apelo estético. Mas é fato que como escritor, consegue ser bem mais sensível, elaborativo e trabalhar simbologias como ninguém – algo que um bom escritor de romances faz muito bem. É certo que pelo menos até o terço final, toda a simbologia trabalhada por ele não é um grande destaque e está longe de ser diruptiva, mas sua sensibilidade em operar e conduzir a narrativa sem deixar que a melancolia recorrente se transforme em manipulação emocional é louvável. O que desabona, pelo menos em tese, é sua conclusão muito didática, em que há um abandono da simbologia limítrofe que vinha até então compondo a jornada de ressignificação de uma vida.

É possível olhar para Todos Nós Desconhecidos até pelo lado da saúde mental do protagonista, que ao entrar numa fragmentação egoica, cria para si uma realidade paralela, típica de episódios dissociativos muito potentes, em que a realidade e as memórias se confundem. A cena em que ele está sozinho no trem e vê no reflexo sua criança se esvaindo, pode servir como representação para essa hipótese e, curiosamente, esse é um dos elementos mais instigantes do filme. O não saber, pelo menos até a conclusão, era o grande fio condutor de uma jornada a um passado incompleto, para sempre. Não há possibilidade de reconstruir algo que não se viveu, só resta, infelizmente, criar sentido e amparo com aquilo que se tem. Fazer isso sozinho é tão solitário e angustiante, que nada mais compreensivo do que criar um amor como amparo testemunhal para a busca de um continente possível de habitação.

Todos Nós Desconhecidos é sensível na sua melodia narrativa, escolhendo as mais simples simbologias e códigos da linguagem cinematográfica para apresentar uma caminhada que pode ser um episódio dissociativo de um personagem limítrofe, ou a um regresso a memórias assombrosas, que se veem misturadas a um desejo mortífero de reconstituir algo impossível, mas com a esperança de ser salvo pelo amor. O deslize relativamente considerável está no seu fim, quando escolhe conscientemente abandonar seu texto simbólico, para firmar posição em algo mais explicito sem tanta necessidade. Porém, é visível a beleza, sinceridade e sensibilidade do diretor em arquitetar a grandeza do vazio melancólico que atravessa seu sujeito personagem que busca, na vida, recursos imagéticos e criativos escritos para fazer um contorno frente a um vazio impossível de ser preenchido.

  • Nota
4

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