Crítica: Motel Destino – Festival de Cannes 2024
Motel Destino – Ficha técnica:
Direção: Karim Aïnouz
Roteiro: Wislan Esmeraldo, Karim Aïnouz, Mauricio Zacharias
Nacionalidade e Lançamento: Brasil, França, Alemanha, Reino Unido, 2024 (Festival de Cannes)
Sinopse: Sob o céu em chamas em uma beira de estrada do litoral cearense, o Motel Destino é palco de jogos perigosos de desejo, poder e violência. Uma noite, a chegada do jovem Heraldo transforma em definitivo o cotidiano do local.
Elenco: Fábio Assunção, Nataly Rocha, Iago Xavier.
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Nas quatro paredes de um motel, tudo é possível, do orgasmo à morte. Karim Ainouz explora o motel como microcosmo para falar de problemas inerentes à realidade brasileira.
Sexo, suor e lágrimas. O irresistível neo-noir cearense de Karim Ainouz começa com uma foda que dá errado. Heraldo (Iago Xavier) é furtado no quarto do Motel Destino e perde a hora de um assalto que acaba resultando no assassinato do seu comparsa e melhor amigo. Sentindo-se culpado pela tragédia e tornando-se procurado pelo bando, Heraldo busca abrigo no Motel Destino e é recebido por Dayana (Nataly Rocha), uma mulher que posteriormente percebemos estar em um relacionamento abusivo com Elias (Fábio Assunção).
O filme então se constitui por meio dessa relação triangular, de tesão, poder e perigo iminentes. Heraldo se afeiçoa de Dayana, que é casada com Elias, que por sua vez parece ter sentimentos ambíguos para com Heraldo. Nos corredores estreitos do motel, essas relações florescem em meio aos gemidos incessantes e indistinguíveis dos clientes, os quais atravessam as paredes e colocam todos à beira da loucura. Paranóia pura, à la “Excitação” de Jean Garrett.
O prazer e o perigo andam juntos em “Motel Destino”, e como em todos os thrillers eróticos mais marcantes da história do cinema, de “Instinto Selvagem” de Verhoeven a “Bound” das irmãs Wachowski, é certo que o gozar não é de graça, sempre vem acompanhado de um preço a se pagar. No filme de Ainouz não é diferente; a linha entre o orgasmo e a violência é tênue. Gritos de prazer e gritos de terror. Uma demonstração de afeto logo se torna uma agressão assim como um beijo pode ser, também, uma forma de violência. Tudo é turvo, e ninguém está a salvo.
Para maximizar o jogo de controle e desejo em que o filme é constituído, Karim explora o voyeurismo cinematográfico em uma verve Hitchcock. As câmeras de vigilância do motel e as portas que espiam a depravação alheia estão abertas para todos verem e se deliciarem, com a certeza de que não serão vistos. Aquela posição confortável que o espectador se encontra no cinema enquanto voyeur, explorada aqui de forma moderna e ultrasexy.
Em “Motel Destino”, todo mundo se excita. Elias tem um segredo sujo: fica excitado ao espiar seus clientes. Enquanto isso, Heraldo e Dayana guardam seu próprio segredo e se excitam em esconder seu relacionamento nas sombras. O causo chega à luz do dia, ironicamente, pelas câmeras. O personagem de Yuri Yamamoto é o responsável por revelar o que as câmeras simplesmente registraram.
Dentre todos os comentários feitos pelo mais recente filme de Ainouz, sem dúvidas a sua exploração do voyeurismo é um dos mais interessantes. É fascinante perceber como todos nós espiamos uns aos outros e como, ultimamente, nós espectadores espiamos aquele que no auge do seu conforto, espia. Tridimensionalidade do ato de ver que enriquece o filme e nossas relações extrafílmicas também.
Outra interessante escolha da obra foi a de tratar a violência de gênero na personagem de Dayana alinhada com o racismo levantado no monólogo final pelo personagem de Heraldo. Ambos funcionam como aliados de uma mesma causa e é como se, ao fim, Elias representasse o que existe de errado nesse sistema machista, racista e opressor. De forma direta, é como se a homossexualidade reprimida e a agressividade do personagem de Fabio Assunção traduzisse o modus operandi do conservadorismo. Hipócrita na mesma medida que é violento.
Em meio a luzes neon, transições entre comédia, neo-noir e suspense erótico e uma trilha sonora enérgica, Karim faz o filme mais nordestino, mas também um dos mais “universais” (se é que essa expressão realmente existe dentro de uma ideia de Cinema) do Festival de Cannes. Como disse em coletiva de imprensa, sexo é como café da manhã.Todo mundo faz, todo mundo gosta. É da natureza humana e é, por isso, absolutamente natural.
Portanto pouco importa se a música que toca é Wesley Safadão e a imagem é de um paredão em posto de beira de estrada no caminho das falésias do Ceará, fato é que o cinema de Karim continua mais humano do que nunca e tudo que constitui a vida é plenamente reconhecível em qualquer lugar desse mundo. Música, sexo, dança, cores. A vida é feita de tudo que o diretor compõe em cena e é sobre isso que “Motel Destino”, como todos seus filmes anteriores, acaba sendo.
Na contramão de uma indústria cada vez mais conservadora, o filme cearense vem acompanhado do tesão brasileiro e do calor nordestino, incendiando dos conservadores aos racistas com seu clímax anticlimático. Seu melodrama inesperado. Um dos filmes que mesmo com seus tropeços em se resolver, deixa uma identidade inteiramente sua que dificilmente será confundida, erotismo tropical no que eu chamaria de “tesão à flor da pele”.