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Crítica:  Love Lies Bleeding – O Amor Sangra

Love Lies Bleeding – O Amor Sangra – Ficha técnica:
Direção: Rose Glass
Roteiro: Rose Glass, Weronika Tofilska
Nacionalidade e Lançamento: Reino Unido, Estados Unidos, 2024 (Festival de Cannes)
Elenco: Katy O’Brian, Kristen Stewart, Anna Baryshnikov, Dave Franco, Jena Malone.
Sinopse: A solitária Lou se apaixona pela ambiciosa fisiculturista Jackie, que está de passagem em direção a Las Vegas, em busca de um sonho. Mas essa história de amor as envolve na rede criminosa da família de Lou.

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Love Lies Bleeding – O Amor Sangra chegou aos cinemas brasileiros no início do mês de maio com uma tímida distribuição, o que é uma pena, já que o novo filme da diretora Rose Glass é uma excelente mistura de amor sáfico, violência e destruição de uma estrutura masculinista de opressão. Lou (Kristen Stewart), trabalha em uma academia decadente de uma cidade do interior, aparentemente pacata. De passagem, a mochileira Jackie (Katy M. O’Brian) com destino a um campeonato de fisiculturismo em Las Vegas encontra Lou, a paixão é instantânea. O que elas não sabem, é que à medida que o amor avança, um cenário de crimes e violência que estava encoberto aparece.

A sinopse é pouco chamativa e tem cara de um thriller qualquer sem grandes novidades, o que em partes é verdade, mas o elemento fantasioso e quase delirante em várias passagens deixa a jornada mais interessante do que aparentemente é. A diretora e co-roteirista Rose Glass, que escreveu em parceria com Weronika Tofilsca, é hábil em unir elementos fantásticos que sustentam a mística em torno da paixão de Lou e Jackie que de tão instantânea se transforma numa simbiose. Essa ideia dos pensamentos fantásticos como representação de uma idealização foi utilizada por Glass em seu primeiro trabalho na direção com o filme Saint Maud (2019). A diferença entre Saint Maud e Love Lies Bleeding, é que no primeiro, a fantasia se misturava com o fanatismo religioso de maneira muito evidente, já no segundo, essa fantasia é mais infantil, sem grandes atravessamentos morais, sendo um apaixonamento mais palpável, diferente do apaixonamento por ideologias fundamentalistas, que é totalmente delirante.

O fato é que Rose Glass sabe das suas habilidades e da segurança que tem em mãos para conduzir esse projeto. A violência em Love Lies Bleeding é explicita e estilizada sem tantos simbolismos, e toda a execução é muito controlada, sutil na medida certa. Quando a violência chega, em especial na cena com o personagem do Dave Franco, cunhado de Lou, é um descarrego de prazer muito satisfatório. JJ (Dave Franco) é casado com a irmã de Lou, Beth (Jena Malone), que apanha frequentemente e não consegue se desvincular da relação. À medida que o relacionamento entre Jackie e Lou avança, e Jackie conhece a família de Lou, o nível de complicação entre histórias não contadas aumenta.

A cena de abertura de Love Lies Bleeding é Lou desentupindo um vaso sanitário, ou seja, vem muita merda pela frente. O que ainda não sabemos é que Lou, é filha de Lou Sr., papel impecável de Ed Harris. Jackie, ao chegar na cidade, vai trabalhar no clube de tiro de Sr., a convite de JJ, que havia transado com Jackie na noite anterior. Isso tudo mostra o embaraço complexo da família de Lou. Jackie é o olho do espectador nessa família, e à medida que ela se aprofunda na relação, interferências que não deveriam ocorrer, acontecem. Isso é simbolizado por ângulos em que as câmeras são câmeras de vigilância e sofrem alguns glitchs, como se algo não estivesse sendo bem transmitido. É fato que esse recurso não é muito inovador, mas é sutil, e essa sutileza é um norte interessante do filme, seja para representar a fantasia apaixonada, seja para explicitar as cenas de violência que vão crescendo a cada minuto.

Lou Sr. é um comerciante ilegal de armas, tem no currículo um número razoável de assassinatos e está sendo investigado pelo FBI. Ed Harris produz uma performance muito impactante, especialmente pelo cabelo tenebroso que usa, e pelo jeito manso e rasteiro de anunciar suas ameaças, inclusive contra a própria filha Lou. É conivente com JJ, mesmo sabendo que ele é o agressor de sua filha mais velha, Beth. Rose Glass é eficiente nesse cenário, consegue manejar com muito controle a violência e o absurdo, e aponta que algo nessa constelação familiar não está correto. Mas o ponto em que ela realmente brilha é no desenvolvimento do relacionamento entre Lou e Jackie.

Há um elemento de body horror na personagem Jackie que é bem explorado. O fisiculturismo é uma arte interessante, sendo o corpo o principal instrumento de trabalho. A introdução de drogas para crescer os músculos, se liga a um realismo fantástico para ela crescer e se transformar em uma mulher ‘gigante’ aos olhos de Lou. Esse crescimento na relação das duas, é mérito da atuação de Katy M. O’Brian, que encarna uma personagem propositalmente alienada dos riscos para chegar em seu objetivo, ao mesmo tempo que carrega um desconhecimento da força que é capaz de produzir.

Já a personagem Lou, papel brilhante de Kristen Stewart – que encontrou e está segura com seu estilo de atuação – é o par romântico que complementa Jackie. Lou é uma garota mirradinha e  introvertida que casa muito bem com o oposto representado por Jackie. A soma de personagens complementares, ajuda a criar liga no romance e na intensidade da relação simbiótica, inclusive nos momentos de intimidade que exalam tesão e paixão. Há cenas memoráveis e muito brilhantes concebidas pela diretora, especialmente na mistura do realismo fantástico com o delírio pelo uso abusivo de substâncias. Essa soma circular que termina com um final feliz, dentro das possibilidades daquele universo, é vigoroso. Só uma gigante poderia enfrentar uma situação gigante e salvar a princesa moderna e melancólica da masmorra do castelo.

Apesar de todo o brilhantismo de Rose Glass, o filme tem algumas tramas com pouco tempo para serem resolvidas. Diversos parênteses são abertos e nem sempre bem desenvolvidos ou dada a devida atenção. Minha citação de boa parte da trama nos parágrafos acima é para representar a quantidade de linhas narrativas que vão sendo abertas no decorrer da rodagem, e que nem todas ganham uma conclusão satisfatória. A sensação é que todas essas linhas dramáticas incham o filme e comprometem o fechamento, pairando uma sensação de correria e atribulação. São sobras dramáticas que poderiam muito bem serem cortadas ou adicionadas a personagens que já existiam. Introduzir um personagem novo para ser útil em um único momento específico pareceu uma distração desnecessária do roteiro, mas nada que atrapalhe a excelente dinâmica sexual das personagens e na execução da violência gráfica e estilizada.

Love Lies Bleeding – O Amor Sangra é um conto de fadas moderno com direito a idealizações mágicas, romance queer, violência, sangue e tesão. A diretora e co-roteirista Rose Glass reforça mais uma vez seu lugar num cinema que desafia algumas convenções do gênero de horror e violência, propondo o elemento mágico para engrandecer a beleza estética em seu segundo longa. Com personagens repletas de furos psíquicos, motivadas a fazer bizarrices em nome de algo maior, a dança erótica com o imaginário delirante e a crueldade da realidade é bem orquestrada e muito satisfatória. E mesmo podendo economizar no fio do tecido para evitar embaraços, Love Lies Bleeding consegue ser marcante, imaginativo, tesudo e extremamente divertido de acompanhar.

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