Rivais, Madonna, tesão e sexualidade
*este texto é uma tentativa de refletir sobre os episódios que envolvem o show da Madonna e o filme Rivais. Sei que o tema pode ter inúmeras ramificações e debates, bem como conceitos mais bem trabalhados. O importante é que o debate continue.
O filme Rivais, de Luca Gadagnino (Me Chame Pelo Seu Nome, We are who we are, Suspiria), está em cartaz no cinema e levou muita gente para as telas especialmente devido à presença de Zendaya no elenco. Embora o filme sobre os tenistas tenha chegado no Brasil já em quinto lugar nas bilheterias, sem superar concorrentes como Guerra Civil e Kung Fu Panda 4, e siga pelas semanas seguintes obliterado pelas obras mais comerciais O Dublê, Férias Trocadas e Garfield – Fora de Casa, o fato é que muitas pessoas da chamada “Geração Z” foram às salas conferir uma Zendaya e mais dois homens cheios de tesão.
Digo tesão porque esta é a palavra-chave de Rivais. No filme, acompanhamos uma partida de tênis bastante disputada entre dois atletas que se sentem pressionados por uma mulher na arquibancada. Por meio de idas e vindas no tempo, Gadagnino nos conta a história de um triângulo amoroso cujas trajetórias são marcadas tanto pelo desejo sexual quanto por um jogo de poder divertidamente contado por atuações empolgantes e uma trilha sonora inesquecível.
12 dias após a estreia de Rivais, o Brasil viveu um momento marcante na cultura pop: Madonna fez o último show de sua turnê, gratuito, nas areias de Copacabana. Televisionado para todo o país, o show teve danças sensuais, simulação de sexo e masturbação, e um discurso da rainha do pop que mencionava palavras como “boquete” e “vagina”, adaptadas na hora pela tradutora com as palavras “carinho” e “periquita”, respectivamente.
Não que isso seja alguma novidade: a cantora de “Like a Virgin” sempre foi polêmica e sempre incomodou os caretas desde que iniciou sua carreira nos anos 1980. Agitar a bandeira do Brasil com Pabllo Vittar no palco talvez tenha sido o ápice do incômodo que Madonna foi capaz de causar nos brasileiros conservadores.
O show de Madonna e o filme “Rivais” são símbolos importantes contra a onda conservadora e a geração Z, marcada pelo “apagão sexual”. É claro que o show em Copacabana foi muito mais impactante no Brasil do que o filme do diretor italiano, assim como é óbvio que o tesão cada vez mais reprimido nos jovens (e nos representantes do conservadorismo) tem raízes muito mais profundas e complexas.
Mesmo assim, é importante refletirmos sobre os episódios recentes que demonstram como a sociedade atual está lidando com as sexualidades, e como a cultura pop e a arte impactam ou são impactadas por essas mudanças.
Uma geração que não gosta de sexo – e também não faz
Antes de voltar ao tema principal deste texto, precisamos refletir sobre algumas questões a respeito dos jovens atuais.
Em matéria para a Veja (3 de julho de 2022), Rodolfo Capler comenta a pesquisa “IGen”, que identificou que os jovens da Geração Z (nascidos por volta de 1995 a meados de 2010) estão propensos a fazer menos sexo na adolescência e na vida adulta. A geração Z tem, hoje, de 14 a 29 anos.
Segundo a matéria, além do uso excessivo de redes sociais, do consumo elevado de pornografia e de jogos que afetam seus relacionamentos, os jovens têm suas relações afetadas pelo “overparenting”, conceito que considera o excesso de zelo dos pais como raiz para um desenvolvimento emocional mais lento.
A discussão sobre tais questões da Geração Z passam por polêmicas recentes envolvendo a cultura pop e o cinema, já que os mais jovens tendem a se incomodar mais com as cenas de sexo nos filmes – o que levou, invariavelmente, à redução deste tipo de cena nas produções atuais (especialmente as de maior apelo comercial). O tema já foi explorado aqui no Cinem(ação) pela Fabiana Lima (repercutindo o debate sobre o “botão de pular cenas de sexo”) e depois pela Carissa Vieira (repercutindo o pedido do ator da série “You” para diminuir as cenas mais picantes). Recentemente, com o assunto de volta à tona a partir do filme Pobres Criaturas, Alan Alves destrinchou o tema em outro texto. Todos os artigos são altamente recomendados!
Assim sendo, devemos reforçar o poder da arte e da cultura pop (ainda que sejam conceitos interseccionáveis) em provocar incômodos e inspirar reflexões.
Mesmo sem nenhuma cena de sexo, o filme estrelado por Zendaya exala tesão e desejo, não apenas de sua personagem Tashi como também de Patrick (Josh O’Connor) e Art (Mike Faist), tanto em relação a ela quanto entre eles.
Da mesma forma, Madonna encena beijos em seus shows e segue com sua proposta de simbolizar o corpo feminino que domina todas as suas possibilidades e desejos, sem tabus ou recalques. É justamente por isso que ela é tão importante para a comunidade LGBTQIA+, já que sua mensagem atinge especialmente aqueles que precisaram lutar para existir e se expressar no mundo.
Diante de uma geração que tem dificuldade de lidar com o sexo e suas expressões, naturalizar os desejos e a sexualidade de forma geral é um passo importante. Não que as pessoas precisem necessariamente “fazer mais sexo”. Não se trata, aqui, da quantidade de vezes que pessoas de um determinado grupo (uma faixa etária, neste caso) tem relações sexuais, mas de entender que a raiz do problema está na falta de maturidade para lidar com a própria sexualidade.
Reflexão através da música e dos filmes (ou: a arte precisa incomodar)
A ascensão da extrema direita e do conservadorismo é um fenômeno que passa por muitas questões. Enquanto a pauta de costumes domina o debate político, muitos poderosos se interessam pela manutenção desse debate raso, feito com base em pânico moral e notícias falsas, já que assim é muito mais fácil dominar públicos e conquistar votos.
É claro que o debate político vai além e pode ser ampliado em infinitas outras questões, mas uma coisa é importante de destacarmos: a arte tem o poder de plantar sementes em terrenos áridos. Uma jovem de família conservadora, dessas que não a “permitem” namorar, pode compreender por meio de “Rivais” que é normal sentir atração sexual, e que essa atração é complexa e múltipla. Um jovem LGBTQIA+ que se sinta empoderado pelo show da Madonna certamente terá um motivo a mais para não se permitir ser obliterado pela sociedade ao seu redor.
A arte chega na emoção e atua de formas muitas vezes intangíveis. E falar de sexo ou retratá-lo com naturalidade é uma forma de romper tabus que machucam nossa sociedade. E o motivo é visto nas notícias diárias que nos mostram casos de violência. É no silenciamento do tema que lares são destruídos por pais e padrastos abusadores. É por causa do machismo conservador que esposas são violentadas e mortas diariamente por homens que acham que podem mandar em seus corpos. É devido às proibições das igrejas que padres e pastores conseguem seguir adiante com seus planos de controlar corpos e disseminar a ideia de que só existe um modelo possível de família, levando à expulsão de tantas pessoas LGBTQIA+ de suas casas.
A maioria das pessoas sente desejo e tesão de formas complexas. Nossos corpos, quando reprimidos, são instrumentalizados por instituições, como explica Foucault: “a relação de poder passa por nossa carne, nosso corpo, nosso sistema nervoso”. Um mundo mais diverso e mais livre deve ser, invariavelmente, um mundo onde a produção artística nos leve a questionar a moralidade estabelecida. Porque é essa moralidade que cria gerações de pessoas que não conseguem assistir a uma cena de sexo na frente dos pais sem se sentirem mal.
Se não temos problema algum em ver cenas intensas de violência com sangue e corpos decepados, mas nos incomodamos tanto com seios, pênis e transas, é porque algo precisa ser resolvido.