Analisando Sofia Coppola: muitas personagens, uma (ou várias) histórias
Analisando a filmografia é uma série de textos que busca desvendar filmes que apresentam a mesma temática desenvolvida ao longo da trajetória cinematográfica de uma diretora ou diretor. Nessa primeira série de cinco textos serão analisados os filmes: As Virgens Suicidas (1999), Maria Antonieta (2006), O Estranho que Nós Amamos (2017) e Priscilla (2023). Este último é um texto final que busca um olhar condensado, analisando pontos em comum das obras realizadas por Sofia Coppola.
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Sofia Carmina Coppola, 52, é cineasta, roteirista, diretora, produtora e atriz ítalo-americana, vencedora do Oscar de Melhor Roteiro Original em 2004 e a terceira mulher a ser indicada a categoria de Melhor Direção no Oscar. Também é filha do renomado diretor Francis Ford Coppola, 84, e da documentarista e cineasta Eleanor Coppola, 87. Sofia nasceu em Nova York, em 14 de maio de 1971, ou seja, taurina – assim como este que lhe escreve. Descende de italianos, Sofia teve uma infância movimentada, como ela mesmo conta em várias entrevistas. Isso é quase dedutível pois filha dele, um dos maiores diretores vivo em atividade, Francis Ford Coppola. Este senhor é responsável apenas por uma das trilogias mais famosas da história do cinema, O Poderoso Chefão (1972), e da ópera explosiva Apocalipse Now (1979), para ficarmos apenas em dois sucessos. Não deve ter sido fácil sobreviver nessa família, já que tudo girava em torno desse pai, o Pai.
No documentário de making-of de Priscilla, disponível para streaming na Mubi, Sofia conta das semelhanças da história de Priscilla Presley com a dela, em menor escala como ela mesmo destaca, por conviver com uma figura imponente e de tudo girar em torno desse homem. Numa entrevista para Financial Times, Sofia conta que não busca aprovação ou dicas do pai para fazer seus filmes, pois ‘’ele tem ideias muito fortes e está olhando para isso da perspectiva dele’’, e apesar de ele sempre aparecer nos créditos como produtor, mantém distância do processo criativo. E mesmo com proximidade entre ela e o pai, Sofia diz não querer “uma perspectiva masculina no meu mundo’’, o que reforça seu lugar de independência dessa zona familiar e artística.
Apesar das diferenças quase abissais entre Sofia Coppola e Priscila Presley, é interessante como ambas, em algum momento, se cruzam nas sombras de homens poderosos. Priscilla com Elvis, Sofia com o pai Francis, precisaram, de formas diferentes, romper com essa masculinidade gravitacional que tendia a puxar para as sombras qualquer possibilidade de autoria frente a vida. E talvez seja por isso e outras coisas, que Sofia sempre faz uma curadoria muito precisa das histórias que escolhe contar. Seja desafiando legados fortemente estabelecidos, como é o caso de Priscilla, seja criando para si, em torno da moda, da escrita e da direção, um lugar de autoria artística da própria vida.
Sofia fez alguns trabalhos como atriz, sendo o mais notável no último filme da trilogia do O Poderoso Chefão, papel que lhe rendeu críticas amargas e algumas bem machistas, mas se encontrou mesmo nos bastidores com a direção e o roteiro. Seu primeiro trabalho como diretora e roteirista, essa última função em parceria com Stephanie Hayman, foi o curta-metragem Lick the Star (1998). Nesse curta, acompanhamos um grupo de adolescentes que querem se vingar dos garotos colocando veneno de rato na comida deles, mas essa pequena vingança dá errado e termina com a exclusão da líder do grupinho.
Uma coisa muito interessante que Lick the Star apresenta, é a formatação muito próxima do que viria a ser As Virgens Suicidas (1999) e posteriormente um pouco da linha condutora da jornada de Sofia no cinema. A tentativa de se encaixar num molde social de funcionamento e de obter liderança pelo próprio desejo ou pelo maior medo, e a solidão barulhenta no interior de si mesma, levando a exclusão ou a morte do sujeito feminino. Essa dinâmica está presente em todos os longas metragens de Sofia Coppola, inclusive daqueles que ela trabalha com a paternidade, como é o caso de Um Lugar Qualquer (2010) e On The Rocks (2020). E apesar de saber que Encontros e Desencontros (2003) é sobre sua relação com o ex-marido e cineasta Spike Jonze, sustento a aposta de ser também um filme de paternidade.
Tem algo nos filmes de Sofia que todos, sem exceção, parecem ser de alguma forma autobiográficos, uns mais do que outros, e se não autobiográficos, no mínimo sintonizam em alguns instantes com recortes muito pessoais. Por outro lado, penso que tenha algo que conte de uma forma ampla do lugar do feminino na sociedade. Apesar de ter nascido numa família abastada e com muitos privilégios, Sofia parece entender os caminhos da angústia da juventude feminina moderna na classe média estadunidense. Isso é muito claro no seu filme de estreia As Virgens Suicidas, e se arrisca, mas com deslizes, em Bling Ring: A Gangue de Hollywood (2013), quando explora a liberdade e fascínio da juventude com a cultura dos sites de fofoca e da maravilha que eram os dados abertos na internet.
Pensando retrospectivamente em tempo histórico, todas as histórias adaptadas e contadas por Sofia ao longo de sua carreira, contam do lugar feminino na era moderna ocidental (depois da Revolução Industrial). Seja com o ‘’nascimento’’ da modernidade com Maria Antonieta (2006) e O Estranho que Nós Amamos (2017), até o mais próximo em tempo histórico com On The Rocks, uma história, em tese, pós-moderna, com a mulher mais independente e com algum custo para sair da tutela masculina, mas com a simples e fundamental diferença de que isso pode ser pontuado em uma conversa razoavelmente tranquila e sem nenhuma ameaça.
Parece que Sofia Coppola tenta dar sentido frente a passagem do tempo, e como o feminino é observado, narrado e produzido ao longo do tempo histórico pela forma com que adapta suas obras. É fato que Sofia também faz um recorte muito próprio das suas histórias ao escolher narrar personagens brancas, geralmente de classe média. Aprofundar questões de classe e raça não parece ser a praia de Sofia, sendo isso mais como especulação, pois se basearmos em fatos, veremos que suas histórias são sempre a partir de uma perspectiva de pessoas brancas. Todas as suas protagonistas são mulheres brancas, inclusive as coadjuvantes. Basta ver as atrizes que sempre trabalham com ela, Kristen Dunst e Elle Fanning, que na maioria das vezes estão representando o mesmo tom de personagens.
Talvez isso se repita por Sofia não encontrar correspondência nas histórias, já que, de alguma forma e já mencionado, a autora parece contar histórias que sejam autobiográficas, ainda que minimamente. Isso não significa, pelo menos é o que conta nas entrevistas e em suas referências fílmicas, que não empatize, compreenda e apoie as questões e debates sobre raça e classe. Sofia não parece ser uma mulher alienada dentro da própria classe, apesar das críticas que costuma receber serem nessa direção. Algumas críticas, nas redes sociais, indicam que Coppola passou pano para Maria Antonieta, o que na minha opinião é uma completa falta de entendimento da história e ausência de senso crítico. Isso parece refletir uma ideia frequente nas mídias digitais de que os filmes devem reproduzir a ideologia do espectador, o que demonstra completa ignorância sobre o cinema.
De todo modo, Sofia Coppola sempre deixou claro quais eram suas ideias e intensões nas histórias que queria contar, sendo muito perceptível uma honestidade com a própria verdade cênica e narrativa. Em seu discurso como vencedora do Oscar de Melhor Roteiro Original em 2004 por Encontros e Desencontros, ela faz os agradecimentos comuns e menciona o magnífico diretor Wong Kar-Wai como uma grande inspiração tanto para o filme que acabara de ser premiado, tanto para sua carreira. Na sua lista dos 10 melhores filmes de todos os tempos da BFI (British Film Institute), In the Mood for Love (2000), um dos maiores sucessos do diretor chinês, é o número um. Nessa mesma lista, ela reserva um lugarzinho para um filme do pai, Rumble Fish (1983), e para cineastas magníficas como Jane Campion com O Piano (1992) e Elaine May com The Heartbreak Kid (1972).
Ao refletir e pesquisar para escrever esse texto, talvez faça sentido que Wong Kar-Wai seja um diretor de inspiração, já que ambos contam de perspectivas diferentes, do lugar quase impossível, do barrado, do desejado jamais acessível. Pode ser apenas uma reflexão vazia da minha parte, mas parece fazer sentido. Assim como a própria carreira de Sofia, que transita em diversas áreas da arte, e isso fica claro em uma de suas várias entrevistas, que conta do seu interesse sobre artes visuais em geral, e que ser roteirista e diretora não estava necessariamente nos planos. Música, fotografia, design e moda sempre foram seus interesses, tanto é que suas fotos de bastidores fazem um grande sucesso nas redes sociais, e hoje a cineasta é embaixadora da marca de moda Chanel, posição que ocupa desde 2019.
Vendo toda essa trajetória, é de se imaginar que a diretora consiga estabelecer vínculos entre suas áreas de interesse. Basta ver sua capacidade de juntar parceiros e de produzir obras que, para além da escrita e da direção silenciosa e extremamente precisa, design de produção e figurino conquistam grande destaque. Maria Antonieta, considerado um ‘’fracasso’’, foi vencedor do Oscar de Melhor Figurino por exemplo, e agora em Priscilla, a direção de arte é simplesmente esplendorosa na recriação de época. Tudo isso e o que já foi descrito nos textos anteriores dessa série, foram os motivos do meu apaixonamento repentino pela diretora. E preciso confessar que um pequeno episódio de mania, ocorrido durante um feriado no ano passado, garantiram a minha fixação por toda a filmografia de Sofia. Felizmente os editores aqui do Cinem(ação) – um beijo para o Daniel e para o Rafa – não me pararam, me incentivaram e deixaram que eu continuasse com essa ideia. Se foi uma boa ideia eu não sei, depois me conte.
Voltando a quem realmente interessa, Sofia Coppola inconscientemente ou não, registra Priscilla – pois é baseado em uma história real – na mesma época (os anos 1970) que As Virgens Suicidas, seu primeiro longa. Como acompanhamos ao longo dos textos, a posição feminina se coloca sempre a partir da posição social e cultural durante as décadas. Mesmo que Priscilla e As Virgens aconteçam na mesma época temporal, o lugar cultural e social da feminilidade são completamente diferentes. A forma como a cultura e as mudanças comportamentais chegam a cada classe social e lugar geográfico, diz muito sobre a construção da linguagem do desejo. Basta ligar a televisão e abrir qualquer rede social e perceber que algumas coisas não mudaram tanto, mas acho que Sofia consegue se localizar e traduzir com sua escrita afiada – mesmo com as críticas justas e injustas – todos os atravessamentos da dinâmica da feminilidade e do se constituir mulher na modernidade.